41- ESTA É UMA CASA DECENTE

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Salomé: Como? Vocês não vão?

João: Aonde, velha?

Salomé: Como aonde? Na casa de Simão, o fariseu. Hoje ele apresentou seu filho na sinagoga e vai dar uma festa para celebrar.

João: Festa é comigo mesmo! Mas não na casa deste sujeito!

Tiago: Anda, João, anime-se. Tem sempre bons pastéis na casa de Simão… E você Pedro? Também não quer ir?

Pedro: E o que foi que eu perdi na casa desse velho avarento?

Salomé: Tá certo que ele é um mão-de-vaca, Pedro, mas veja só, ele convidou toda família. E como aqui em Cafarnaum, o que não é neto, é sobrinho do velho, imagine, meia cidade irá hoje comer lá.

Tiago: Sim, homem, vamos não seja mal humorado… Pedro, avise a Rufina. E você André, não fique aí com cara de espantalho… Jesus, o que é que há? Não vem?

Jesus: Eu iria, Tiago, mas não sou nem neto nem sobrinho deste tal Simão.

Tiago: Ah, isso dá na mesma, Moreno. Você é amigo nosso e os amigos da família são familiares também. Garanto que a casa vai estar mais cheia de gente que um barril de azeitonas… Eia, rapazes, ao divertimento!

O ruivo animou a todos. E, pouco depois, estávamos na rua dos banqueiros, em frente à casa de Simão, o fariseu. Enquanto esperávamos que abrissem a porta vimos, junto ao muro, as duas mulheres que todos conhecíamos… Uma delas, a mais jovem, começou a fazer sinais para Jesus…

Maria: Psiu! Ei, você, de Nazaré…! Psiu…! Como vai?… Aquele é um amigo meu, Selina, não se meta com ele.

Selina: E quem é ele?

Maria: Ah, é um cara meio doido…

Jesus: Oi, Maria! Estava mesmo querendo saber de você. Como vai a vida?

Maria: No negócio, compadre. Temos de aproveitar as oportunidades! Não é Selina?

Jesus: E vocês aproveitam bem porque desde a outra rua venho sentindo o perfume!

Selina: É sim, compadre, nós trabalhamos de noite, se não nos vêem, ao menos nos farejam!

Maria: Sim, ria agora, tonta, porque depois terá de passar, pelo menos umas três horas aqui, escorada no muro, sem faturar nada.

Selina: Bom, não se queixe, que com este moreno você já ganhou a noite.

Maria: Não meta o focinho, Selina. Já lhe disse que isso é outra coisa…

Jesus: É que eu e Maria somos amigos. Sabe?

Selina: Sim, estou percebendo. O que acontece é que Maria passa muito ruge, põe muitos colares e acaba levando vantagem sobre mim. Está bem, colega, você venceu, eu me rendo.

Maria e Selina levavam pendurado no pescoço um frasco pequeno cheio de azeite de jasmim. Era o perfume que as prostitutas sempre usavam…

João: Ei, Jesus, venha, já vão abrir a porta!

Jesus: Já vou, João, espere…!

Maria: Você, sempre com estes tipos, parece que nasceram grudados… Ande, vai lá com seus amigos, e vai empurrando, porque que se não acabam deixando você de fora!

Jesus: E vocês, não entram?

Maria: Nós? Rá! Não lhe disse Selina? Este tipo é doido!

Jesus: Não, Maria, estou falando sério. Por que não entram com todos?

Maria: É claro que eu queria entrar! Pelo menos para comer uns pastéis! Mas o nosso lugar é aqui fora. Como vamos entrar? “Esta é uma casa muito honrada e muito limpa, a casa do fariseu Simão”. Que o diabo o carregue, velho maldito!

Jesus: Por que fala tão mal dele? O que ele lhe fez?

Maria: Para mim nada. Mas para todos os desgraçados que lhe devem dinheiro…! Assim se tornou rico de pressa: emprestando dez e cobrando vinte, e agarrando pelo cangote os infelizes que não podem lhe pagar no prazo!

João: Ei, Jesus, que é que há? Não vem?

Jesus: Escute, João, e estas garotas não podem entrar na festa também?

João: Quem? Estas duas mariposas…?

Maria: Sim, homem, leve a gente… Afinal, o negócio anda mal… E aí dentro pelo menos nós descolamos alguma para forrar o estômago…!

Jesus: O que você acha, João? Elas podem entrar?

João: Sim, homem, ninguém vai se dar conta… Andem, venham com a gente e se espalhem no meio do grupo…

Maria: Acho até que isso vai ser divertido!… Bom, como diz o ditado, mais vale chegar na hora que ser convidado! Vamos, Selina, ande…!

Selina: Não, não, Maria. É melhor eu ficar aqui fora caso apareça um cliente. Vai você. E quando se aborrecer, você sai e troca comigo…

Maria: Bem, colega, você não sabe o que está perdendo… Até logo!

Selina: Até logo, e não se esqueça de me trazer um salgadinho!

Nós nos juntamos com Pedro e os demais e já estávamos cruzando a porta de entrada quando um dos serventes, com a cara muito séria, impediu a entrada de Maria, a madalena…

Servente: Ei você, espertinha, aonde pensa que vai, hein? Esta é uma casa decente, está entendendo?… Caia fora!

Jesus: Escute amigo, esta mulher está incomodando você? … Então, também não a incomode…

Servente: Escute, nazareno… Claro, você não é daqui e não sabe… Mas esta dona que está com você é uma “fulana”. Então…

Jesus: Então, nós que estamos com ela também somos uns fulanos. Tem mais alguma coisa para dizer?

Servente: Que diabos, forasteiro! Está bem, entrem com ela. Mas vou lhe dizer uma coisa, descarada: não arme nenhuma confusão. E vocês lavem-se quando sair para não federem a jasmim!

Maria: Filho de uma cadela… Puah…! “Esta é uma casa decente”… Sim, sim, agora nem olha na minha cara… Mas, amanhã, será o primeiro a bater na porta da minha casa! Tipo nojento!

Jesus: Deixe-o, Maria. Se não quer que se metam com você, também não se meta com eles… Venha, vamos entrar!

O pátio da casa era muito grande e cabia muita gente. Sentaram o pessoal que era do bairro ao fundo, sobre uma esteira de palha, e nos deram tâmaras para encher o estômago. As mesas da frente, muito enfeitadas, e com a melhor comida, eram para os comerciantes e os parentes ricos de Simão, o fariseu… Um destes se aproximou de onde nós estávamos…

Um Homem: Maria, que belo peixe você pescou! Como conseguiu o nazareno?

Maria: Condenado nojento! Saia, saia do meu lado, que agora não estou trabalhando!

Homem: Está bem, garota, não fique assim. Era só uma brincadeira…!

Maria: Não lhe disse, Jesus? Nosso lugar é lá fora…

Jesus: Você é que procura, Maria. Quem manda colocar tanto perfume? Nem com uma espátula dá para raspá-lo de sua pele!… Vamos lá, esquece isso e come alguma coisa…

Então chegou o coxo Benedito, trançando as pernas com uma jarra de vinho pela metade na mão…

Benedito: Mas olhe só a sereia que chegou nesta praia! Hip! Mariazinha da minha vida, tanto tempo que a procuro e agora a encontrei…! Hip!

Maria: Siga seu caminho, velho safado, e sossegue a macaca!

Benedito: Não me trate assim, querida. Se para mim está sobrando vinho… em você está sobrando roupa! Hip! Não estou certo, amigo? … Ela fica melhor sem tantos trapos…

O coxo Benedito se lançou sobre Maria. De uma só vez, rasgou o vestido dela. Então Jesus empurrou o bêbado e este tropeçou e caiu de costas. Em seguida armou-se um tumulto naquele lado do pátio… Para completar, o frasco de jasmim que Maria levava no pescoço, rolou pelo chão e se fez em pedaços, e aquilo começou a cheirar como uma feira…

Servente: Que diabos está acontecendo? … Não lhe avisei, rameira, que não queria confusão?

Jesus: Quem armou a confusão foram vocês…

Servente: Cale a boca, forasteiro! E você, sua quenga, agora você vai ver uma coisa!

O servente levantou o bastão que levava nas mãos com um gesto de ameaça. Maria se agachou e se atirou aos pés de Jesus buscando proteção…

Servente: Saia daí que eu vou lhe ensinar a respeitar as casas decentes!

Jesus: Tiago, João, ajudem-me!

Meu irmão e eu caímos sobre o servente, mas outros vizinhos caíram sobre nós…

Um Homem: Tome, intrometido!

A coisa tinha se complicado, se nesse momento não aparecesse, alarmado pela confusão, Simão, o fariseu, o dono da casa…

Simão: Mas o que está acontecendo aqui? Não se pode ter uma festa em paz?

Jesus: Aqui não está acontecendo nada… Estamos apenas conversando.

Simão: Conversando? E esta que está no chão, está conversando também?

Servente: Esta é uma fulaninha da rua dos jasmins…

Simão: E o que faz uma fulana aqui na minha casa? Quem a deixou entrar?

Jesus: Foi eu, Simão. Entrou comigo.

Simão: E quem é você para sujar a minha casa?

Servente: Este é o forasteiro de Nazaré, seguramente já ouviu falar dele… Tem fama de profeta.

Simão: Profeta? Eu não sabia que os profetas de agora se deixem enredar pelas rameiras… Vamos, vamos, tirem a esta fulana da minha casa! Prefiro o cheiro de mijo de gato que o perfume de pecadoras!

Maria continuava no chão. Chorava envergonhada aos pés de Jesus com o cabelo todo desarrumado.

Simão: Disse para tirarem essa fulana daqui! Minha casa é uma casa decente!

Jesus: Simão, com sua permissão, posso perguntar uma coisa?

Simão: O que você quer, forasteiro? Fale logo. Este perfume me dá náuseas.

Jesus: Escute esta história, Simão: dois homens deviam dinheiro a um banqueiro. Um devia cinqüenta denários e o outro quinhentos. Mas os dois perderam a colheita e nenhum tinha um centavo para pagar o banqueiro.

Simão: E o banqueiro os meteu na cadeia, que é o que mereciam.

Jesus: Não, ao contrário, sentiu pena deles e perdoou a dívida dos dois. Agora, me diga, Simão: qual dos dois homens será mais agradecido ao banqueiro?

Simão: Que pergunta! O dos quinhentos denários. Foi-lhe perdoado mais, será mais agradecido. O que tem isso a ver com esta fulana?

Jesus: Tem muito a ver. Mas não sei se você entenderá. Porque você nunca perdoou ninguém, nem nunca precisou do perdão de alguém. Ela sim. E por isso, sabe agradecer.

Simão: A quem ela tem o que agradecer?

Jesus: A você, é claro, nada. Quando nós entramos, os da periferia, você nos colocou aqui atrás, não veio nos saudar e nem sequer nos deu água para lavarmos as mãos. A você, nada. A Deus, sim. Tem que dar graças a Deus, porque perdoou toda a dívida que tinha com Ele.

Então, Simão, o fariseu, apertou o cabo de seu bastão e olhou Jesus com um ar de desprezo…

Simão: Charlatão! Tirem esta fulana daqui. E o nazareno também. E todos os que estiverem fedendo a jasmim. Prefiro o cheiro de mijo de gato ao perfume das pecadoras!

Jesus levantou Maria do chão e saiu com ela. Nós também saímos dali. E também os outros do bairro. Eu acho que foi desde aquela festa na casa de Simão, que Maria, a de Magdala, começou a mudar.

*Comentários*

Um velho provérbio dos rabinos nos tempos de Jesus dizia: “não se deve falar muito com uma mulher na rua”. Não só com uma prostituta – o que já era o cúmulo – mas com qualquer mulher. Jesus rompeu, em várias ocasiões, os costumes de seu povo com relação à maneira de tratar as mulheres. E dentro desta sua liberdade frente às tradições, tratou com especial preferência as “más mulheres”, o que escandalizou profundamente as “boas” pessoas de seu tempo.

Jesus repetia continuamente que Deus interessava-se preferencialmente pelos pecadores e que estes estão mais próximos de Deus que os piedosos e os cumpridores da lei. Isto provocava um irado protesto, principalmente entre os fariseus. Temos de levar em conta que nem sempre os fariseus eram da classe alta. Havia também os das classes mais humildes. O que caracterizava a uns e outros era o orgulho, por acharem que pertenciam à comunidade dos eleitos de Deus. Ao longo de todo o evangelho, Jesus lhes jogou várias vezes na cara sua hipocrisia e tentou fazê-los ver que eram eles que, por sua arrogância, estavam mais longe de Deus que qualquer um.

Também hoje em dia não faltam fariseus: há muitas pessoas que fazem de sua suposta “decência”, de sua boa educação, de sua boa família – e na maioria dos casos, do dinheiro que têm – uma barreira para se separar dos de baixo. De cima desta barreira, não só se acham superiores, de maior valor, mas também chegam a identificar o cristianismo com sua classe social, com a sua moral de aparências. Tudo isso é uma farsa que nada tem a ver com o evangelho. As virtudes cristãs são primeiramente as atitudes de solidariedade e de igualdade entre os homens, contrárias a todo sentimento de orgulho ou de discriminação. Nem nesta ocasião nem em nenhuma outra, Jesus reclamou para si um trato especial, de preferência, como o que exigem os grandes deste mundo, que se rodeiam de servos, de luxo ou de distinções, para ressaltar a importância que querem que lhes dêem. O que Jesus reclamou sempre foi um tratamento de respeito, de condescendência, para com os marginalizados e com os pobres. Não quis privilégios para si, mas igualdade para todos.

Jesus conta uma pequena história a Simão, o fariseu: a dos dois devedores. É uma parábola sobre o tema do perdão. Jesus diz com ela que é o pecador quem “sabe” realmente o que é o perdão e, por isso, é também o único que pode ser agradecido. O fariseu, orgulhoso e arrogante, nunca chegará a saber o que é isso, pois não acha que deva ser perdoado por nada. E tampouco sabe agradecer. O agradecimento por se saber perdoado – dimensão básica na relação do Homem com Deus – não está ao alcance de quem já se crê bom.

(Lucas 7, 36-50)