6- O MACHADO NA RAIZ

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Naquele tempo, José Caifás era sumo sacerdote em Israel. O sumo sacerdote era o chefe religioso de todo o país. Caifás vivia em um palácio muito luxuoso em Jerusalém. Todos nós o odiávamos, porque sabíamos dos negócios sujos em que estava metido e porque era um vendido aos romanos que ocupavam nossa terra…

Um sacerdote: Excelência, viemos lhe falar de um assunto delicado…

Caifás: Sim, já sei, é sobre os novos impostos. Está bem. Dou a minha aprovação. De qualquer maneira, não sou eu mesmo quem vai pagá-los. De minha parte, digam ao governador Pilatos que faça o que considere mais conveniente para manter a boa ordem e a paz em nosso país. Ah, e digam-lhe também que não se esqueça do convite que me fez. Irei amanhã à Torre Antonia para saborear esse famoso vinho que lhe mandaram de Roma.

Outro Sacerdote: Nós lhe diremos, excelência, mas o assunto é outro… Veja o senhor…

Caifás: Escutem bem, se foi meu sogro Anás quem os mandou outra vez cobrar os cordeiros do dia da Páscoa, digam-lhe que sinto muito, mas agora não posso pagar-lhe nenhum denário. Tive muitos gastos com a construção do meu palácio de campo. Além disso, não vejo porque tanta pressa se, no fim, tudo fica em família.

Sacerdote: Não viemos aqui cobrar nada, excelência. Trata-se de João, o filho de Zacarias…

Caifás: Ah, então é isso…

Sacerdote: Certamente o senhor já está a par do alvoroço que esse louco vem armando lá pelas bandas do Jordão…

Caifás: Sim, desgraçadamente, estou bem inteirado…

Sacerdote: As pessoas vão em massa escutar suas fanfarronices. Dizem que é um profeta de Deus. Outros dizem que é o próprio Messias, o Libertador que nosso povo espera…

Caifás: Messias, esse cabeludo?!… Profeta!… Um piolhento, isso é o que ele é, tão piolhento e tão ensebado como toda essa chusma que vai atrás dele.

Sacerdote: Mas é preciso fazer algo, excelência. A doença pode ser contagiosa…

Caifás: Pois então, vão vocês mesmos. Sim, vão ao Jordão e averiguem o que tem por trás disso. Perguntem-lhe que demônios pretende com essa gritaria toda e esses batismos. E quem lhe deu permissão para agitar o povo. E digam-lhe, de minha parte, que tome muito cuidado, mas muito cuidado mesmo!…

Os olhos de Caifás, grandes e vigilantes como os de uma coruja, ficaram fixos na porta de cedro de seu palácio, enquanto os sacerdotes saíam. Depois, sentou-se pesadamente num grande sofá forrado de seda. Nos próximos dias lhe trariam notícias diretas daquele profeta, incômodo e rebelde, que tantos problemas estava criando a ele, o sumo sacerdote de Jerusalém.

Cada dia vinha mais gente ao Jordão para escutar João e batizar-se. Naquela mesma manhã, e antes que chegassem os sacerdotes de Jerusalém enviados por Caifás, aproximaram-se de Betabara quatro fariseus. Os fariseus se achavam santos e puros porque iam ao Templo, rezavam três vezes ao dia e jejuavam sempre que mandava a Lei de Moisés. Eles nos desprezavam e nós ríamos deles…

Fariseus: Livra-me, Senhor dos homens maus, guarda-me dos ímpios, eles têm línguas mentirosas e em seus corações só se esconde o pecado, não me contamines com eles, Deus de Israel, não permitas que a sombra de meu manto se suje com as impurezas dos homens sem Lei, homens maus, que não conhecem teus mandamentos nem respeitam teu santo Templo, livra-me, Senhor…

Quatro fariseus, envoltos em seus mantos de listas negras e brancas, abriram

caminho por entre as pessoas. Olhavam para o chão e rezavam sem parar. Não queriam manchar-se conosco…

Tiago: E esses, agora, o que vieram procurar aqui? Fariseus! Puaf! Ao diabo com esses abutres!

Felipe: Deixe-os em paz, Tiago, vamos ver o que eles querem… Aqui todo mundo tem direito…

Tiago: Eles vieram espiar o que diz o profeta João!… nojeira de gente! E se acham santos…

Um fariseu: João, filho de Zacarias, viajamos de Betel para conhecê-lo e receber o batismo de purificação…

Outro fariseu: Somos cumpridores da Lei, profeta João. Respeitamos o sábado. Damos esmola ao Templo, cumprimos a oração diária e o jejum.

Fariseu: Obedecemos a Deus. O que mais você nos pede?

Batista: Eu não peço nada. É Deus que pede justiça.

Fariseu: Pois eu lhe digo, profeta João, que sempre cumprimos essa justiça. Nossas mãos estão limpas.

Fariseu: Nós também queremos preparar o caminho do Messias.

Batista: Pois ninguém prepara o caminho do Libertador dizendo que está limpo. Suas mãos podem estar limpas de tanto vocês as lavarem e lavarem, mas seu coração está sujo! Está cheio de orgulho e de presunção Vocês não são melhores do que esses camponeses que andam por aqui, e do que estas prostitutas que choram seus pecados e pedem perdão a Deus!.

Fariseu: Com quem você está nos comparando? Nós somos filhos de Abraão!

Batista: Não! Vocês são filhos de cascavel!… Vocês são como cobras: levam o veneno escondido no estômago!… Não presumam dizendo que são filhos de Abraão!… Olhem essas pedras… Deus tem poder para transformar essas pedras em filhos de Abraão!… Os filhos de Abraão são os que praticam a justiça e não se colocam acima de seus irmãos. Fariseus cegos: lavem seus corações, e não as mãos. Ajam com retidão e não fiquem rezando tantas orações! E ouçam bem: se não fizerem isso, não escaparão do fogo que se aproxima…

Tiago: É isso aí, João! Duro com eles!… Esse homem canta a verdade a quem quer que seja. Malditos fariseus! Têm sempre que meter o nariz em toda parte!

Felipe: Pois, olhem, que eu conheço um fariseu, o Benjamim, que é gente muito fina. Sempre me ajuda e…

Tiago: Que é isso, Felipe, não me venha agora defender essa gente!

Felilpe: Mas o que eu estava dizendo era que o Jacobinho…

Tiago: Ei, animal, não precisa empurrar… aqui tem lugar pra todo mundo!

Um Sacerdote: Deixe-me passar, galileu!

Tiago: Ei, o que é isso?

Outro Sacerdote: Saia da frente, rapaz, temos de voltar depressa a Jerusalém!

Então, quando João gritava contra a hipocrisia dos fariseus, do alto de uma rocha, chegaram à margem os sacerdotes que vinham de Jerusalém, mandados por Caifás. Vestiam umas roupas amarelas e cheiravam a sândalo e incenso.

Batista: Juro pela minha cabeça, diz Deus, que vou pescar todos vocês com anzol! Como se pescam os peixes nas águas do rio, assim vou agarrá-los a todos e nenhum só escapará do dia da Cólera!

Sacerdote: João, filho de Zacarias!… Quem lhe deu autoridade para dizer essas coisas?

Sacerdote: Quem você pensa que é?

Batista: E quem são vocês?

Sacerdote: Caifás, o sumo sacerdote, que tem seu trono em Jerusalém e em suas mãos as leis Deus, nos manda perguntar-lhe: com que direito você fala desse jeito? Quem você pensa que é? Não responde, heim?!… Você fica agitando essa gente com seus gritos e suas bravatas e agora fica calado?

Sacerdote: Quem você acredita que é?… O Libertador de Israel?

Batista: Eu não sou o Libertador de Israel.

Sacerdote: Então, com permissão de quem você anda aqui falando a essa gente do fogo de Deus que vem para purificar os homens? Por acaso você se acha o profeta Elias, que fazia queimar a terra com suas palavras?

Batista: Eu não sou Elias! Elias foi o maior dos profetas! Eu não sou Elias! Eu só anuncio aquele que vem e preparo seu caminho!

Sacerdote: E como você prepara seu caminho? Batizando esses desgraçados e enchendo suas cabeças com histórias?… Quem é você para batizar? Nós já temos nossas purificações. Estão escritas na Lei e o sumo sacerdote é o guardião dessa Lei. Quem você pensa que é para querer começar essa nova moda? Acha que é Moisés, com direito de dar novas leis para esse povo?

Batista: Não! Não sou nenhum Moisés!

Sacerdote: Então, o que diremos a Caifás, o sumo sacerdote? Temos de levar-lhe uma resposta. Em nome de quem você faz o que faz?

Batista: Digam isso a Caifás: em nome de quem tu fazes o que fazes? Em nome de Deus, tu te manchas as mãos nos negócios sujos de teu sogro Anás! Em nome de Deus tu te assentas à mesma mesa com os opressores romanos!

Sacerdote: Cale-se! Você ofende o sumo sacerdote! Você ofende a Deus!

Batista: Não, é o sumo sacerdote que ofendeu a Deus com suas injustiças e seus crimes! Não me calarei! Não posso calar-me! Eu sou a voz que grita no deserto: é preciso abrir um caminho reto para o Senhor! Digam a Caifás que seu trono estremece. Já disse ontem um galileu que estava entre vocês: não são os galhos que estão podres, é o tronco, é a árvore inteira. E quando está podre a raiz, é preciso arrancar a árvore toda… Vejam isso!… O que tenho nas mãos?

Felipe: Daqui estou vendo um bastão!

Batista: Não, vocês enxergam um bastão, mas olhem bem!… É o machado do Messias! Olhem também vocês e vão contar a Caifás o que viram! Deus pôs um machado em minhas mãos e eu devo pô-lo nas mãos de outro que vem depois de mim. Eu só coloco o machado na raiz da árvore para que aquele que vem depois, termine mais depressa. Quando ele vier, levantará o machado e de um só golpe cortará a árvore podre. Chegou o dia da cólera de Deus! O machado já está pronto e afiado! Só falta quem o empunhe… Mas ele já vem, não se demora, já está entre nós… Onde estás, Messias?… Onde te escondes, Libertador! vem depressa!… Abra-se já a terra e brote o Libertador! Escancarem-se já os céus e que nos chova a salvação de nosso Deus!

Dias depois os sacerdotes regressaram a Jerusalém…

Um Sacerdote: Sumo sacerdote Caifás, esse homem é um louco furioso.

Caifás: Se é um louco não é perigoso. Essa loucura passará logo.

Outro sacerdote: Ele se mete no rio, rodeado de toda essa gentalha e ali

grita e vocifera. Tem nas mãos um bastão e diz que é um machado, o machado do Messias para cortar as raízes podres de uma árvore…

Caifás: Desse aí nós temos de cortar é a cabeleira!

Sacerdote: Mas não é só isso. Ele é um agitador! Falou com palavras muito duras de sua excelência.

Caifás: Não me diga!? E o que ele falou de mim?

Sacerdote: Disse que o trono de sua excelência está estremecendo, porque chega o dia da cólera de Deus. Disse que ele é a voz que grita no deserto.

Caifás: Pois que continue gritando, que os agitadores duram pouco neste país… Que continue, que continue falando. Resta pouco a esse João… resta-lhe mesmo muito pouco…

João continuava batizando as pessoas que acudiam ao Jordão. Tinha pressa. Sabia melhor que ninguém que seus dias estavam contados. Tinha pressa mas não tinha medo. Levava dentro de si a coragem dos profetas, desde Elias, o maior deles, até Zacarias, que morreu assassinado entre o templo e o altar.

*Comentários*

A atividade de João Batista inquietava cada vez mais as autoridades tanto políticas como religiosas, que temiam qualquer movimento popular. Por isso, a autoridade central representada pelo sumo sacerdote Caifás envia ao Jordão uma comissão de investigação. A máxima autoridade religiosa de Israel era o sumo sacerdote. Do templo de Jerusalém, controlava todo o sistema teocrático no qual a religião e a política iam sempre de mãos dadas. Do sumo sacerdote dependia o pessoal do templo, formado fundamentalmente pelos sacerdotes e levitas.

Poucos anos antes do nascimento de Jesus, Anás era o sumo sacerdote. Este homem, da poderosa família sacerdotal de Beto, era muito influente política e economicamente. No cargo de sumo sacerdote sucederam-lhe cinco de seus filhos e, finalmente, seu genro José Caifás, que foi quem condenou Jesus à morte. Se em algum tempo histórico os sumos sacerdotes representaram os sentimentos religiosos do povo, nos anos em que são narrados os evangelhos, esta instituição estava totalmente corrompida. O sumo sacerdote não era mais que um colaboracionista

do imperialismo romano, o máximo representante de um sistema religioso que oprimia as pessoas com leis e com medo. Deste cargo obtinha também grandes benefícios econômicos. A personalidade de João Batista, autêntica, valente e realmente religiosa, fazia tremer todo esse sistema. Para qualquer instituição – seja religiosa, política ou cultural – a voz dos profetas é sempre perigosa. Um profeta nasce fora da instituição, ou precisamente por sê-lo, vai ficando cada mais à margem dela. A instituição representa a lei, a norma, a segurança, o poder. O profeta, por seu lado, encarna o risco, a audácia, a liberdade, a imaginação. Ao longo de todos os tempos, existiu o conflito instituição-profetismo, inclusive na Igreja.

Também se aproxima de João um grupo de fariseus. Nos relatos evangélicos eles são apresentados sempre como os mais tenazes inimigos de Jesus. A palavra “fariseu” quer dizer “separado”. Os fariseus não eram sacerdotes. Formavam um movimento leigo que era dirigido pelos letrados e escribas. Sua prática religiosa estava centrada obsessivamente no estrito cumprimento da Lei e, por isso mesmo, desprezavam e se “separavam” do povo que não compartilhava nem entendia uma escrupulosidade tão opressiva.

A mentalidade farisaica continua viva em todas as pessoas que imaginam Deus como um “banqueiro” que anota nossos atos bons e maus, a quem podemos “comprar” conseguindo méritos (sacrifícios, promessas, votos…). Está viva sobretudo nos que pensam que são melhores e desprezam os outros. Uma das maiores novidades da mensagem de Jesus é proclamar que esses que se acham bons serão os últimos, e os últimos, os “pecadores” (prostitutas, bêbados, ladrões) são os primeiros para Deus.

João fala à comissão investigadora da chegada do Dia da Cólera de Deus. A Ira, a Cólera de Deus, é um tema bíblico a que recorre a maioria dos profetas. Não se trata de uma ira caprichosa nem arbitrária, nem tampouco uma forma de vingança passional que Deus toma contra os que o ofendem “pessoalmente”. Quando os profetas falam desta Cólera se referem especialmente ao Dia em que Deus esgote sua paciência diante da ação dos opressores e intervenha de umavez, com todo seu poder, em favor dos oprimidos. Muito menos se deve entender que o Deus do Antigo Testamento seja um Deus vingativo e colérico, superado pelo Deus de Jesus, só amor e misericórdia. Os textos do Novo Testamento, tanto no Evangelho como em outros livros, recorrem ao tema da Cólera (Rom 2,5-8; Apc 6,12-17), assim como os antigos profetas também falaram da ternura ilimitada de Deus (Ex 34,6-7; Is 49,13-16).

(Mateus 3,7-12; Lucas 3,7-20; João 1,19-28)