KILLARICOCHA, A MALDIÇÃO DA ABUNDÂNCIA (10)

Radioclip en texto sin audio grabado.

Último capítulo de uma radionovela bem polêmica.

Capítulo 10 A benção da Pachamama

CONTROLE MÚSICA CAMPONESA ALEGRE

LOCUTOR Killaricocha.

LOCUTORA A maldição da abundância.

NARRADORA Dona Lucy saiu de muletas do posto médico. Já em sua casa e com melhor semblante, recebeu a visita de seus vizinhos e vizinhas, impacientes por cumprimentá-la e conversar com ela.

VIZINHA 1 Como está, dona Lucy? Estamos com saudades de você, vizinha.

LUCY Já estou melhorzinha, graças a Deus. Alegra-me que venham ver-me.

VIZINHO Aqui estamos para falar com a senhora, dona Lucy. A senhora continua sendo a presidenta da Frente de Defensa. A senhora saberá o que fazer agora.

LUCY Como disse, vizinho?

VIZINHO Depois de tudo o que passou e com a morte do mestre Nicanor ficamos um pouco desorientados. O que vai ser agora?

FERMÍN Ai, vizinho, deixe a minha Lucy tranquila, veja que ela ainda não está muito bem da perna.

LUCY Já estou bem, Fermín. Esta visita é o melhor remédio que me podem dar. Vizinho, eu também ando pensando nisso. E se convocamos uma grande reunião? Que venha todo mundo. Assim respondemos a sua pergunta entre todos.

CONTROLE MÚSICA DE TRANSIÇÃO

NARRADORA No dia da reunião, o salão comunitário estava lotado. No centro, sobre a mesa, tinham colocado um buque de flores brancas junto à foto do mestre Nicanor.

VIZINHO (DE 3 a 1P) Esta assembleia é por muito importante para Killaricocha. O que acontecerá com nossa comunidade? Para isso convocamos e está conosco dona Lucy, presidenta da Frente de Defensa.

EFEITO APLAUSOS

VIZINHA 2 Bem-vinda, dona Lucy!… Viva a Frente de Defensa!

TODOS Viva! (APLAUSOS)

LUCY Pois eu agradeço a Deus por estar viva e aqui, com vocês.

EFEITO APLAUSOS

LUCY Companheiros, companheiras, sabemos que o governo suspendeu as atividades da Green. Ouçam a palavrinha, “suspendido”. Mas… até quando? Vamos ficar de braços cruzados até que apareçam outra vez?

VIZINHA 1 Eu acho, dona Lucy, que devemos aproveitar este tempo e pensar como queremos organizar-nos na comunidade para que todos vivamos bem.

VIZINHO Digo o mesmo que a companheira. Killaricocha tem ouro debaixo da terra. Mas sua principal riqueza está encima. Somos nós. Por acaso não sabemos viver de nosso trabalho?

LUCY A vizinha propôs pensar um plano para viver melhor em nossa comunidade. Estão de acordo?

TODOS Sim, sim!

PREFEITO (DE 3 A 1P) Um momento… permitam-me a palavra?

VÁRIOS (MEIA VOZ) O prefeito… chegou o prefeito…

LUCY Senhor prefeito!… O senhor por aqui?

PREFEITO Desculpem a interrupção… Dona Lucy, vizinhos, vizinhas… Quero falar com vocês.

LUCY A palavra não é negada a ninguém, senhor prefeito.

PREFEITO Eu vim… eu quero pedir-lhes perdão por tudo o que passou.

EFEITO RUMORES

PREFEITO É difícil acreditar em mim, mas lhes juro que eu nem sequer imaginava o que poderia acontecer. Eles, os da empresa, me falaram sobre o desenvolvimento de Killaricocha, dos recursos que entrariam para as obras públicas…

LUCY Já que estamos falando de cara limpa… diga-nos, senhor prefeito, o senhor se comprometeu com a Green?

PREFEITO Pois… envergonha-me admiti-lo… mas, sim, a empresa me deu uma importante participação econômica.

NARRADORA A assembleia ficou em silêncio. O prefeito, com os olhos baixos, tirou diante de todos um maço de notas.

PREFEITO Este dinheiro pertence à comunidade. É de vocês.

LUCY E se o agradecermos. Porque não é fácil reconhecer que meteu a mão na cumbuca, sobretudo quando troxeram tanta desgraça. O que diria o mestre Nicanor? Com a grandeza de seu coração lhe abriria os braços, senhor prefeito.

EFEITO APLAUSOS

LUCY (RINDO) Mas isso sim, nós estaremos vigilantes, senhor prefeito.

PREFEITO Obrigado, obrigado.

LUCY Pode ficar com a gente e ajudar-nos a pensar… Em que estávamos? Continuemos com a reunião. Podemos propor tudo o que desejamos para Killaricocha e vamos tomando nota.

VIZINHA 1 Eu, dona Lucy!

LUCY Diga, vizinha.

VIZINHA 1 Proponho que ninguém toque na nossa lagoa nem nas terras comunitárias. Lá vamos continuar semeando batatas, quinua, amaranto. Produtos orgânicos, uai.

FERMÍN E por que não fazem farinhas, doces, conservas, para vender em outras localidades também?

VIZINHA 2 Nós somos um grupo de mulheres e cultivamos plantas medicinais. Vamos convidar outras vizinhas para formar uma cooperativa.

VIZINHO E se nos unimos os que temos gado para fazer uma boa indústria de leite e queijos? O senhor, prefeito, também tem suas vaquinhas.

VIZINHA 1 Até uma pequena hidroelétrica poderíamos fazer aproveitando que temos um rio que desce da serra. Assim teríamos eletricidade barata.

FERMÍN Um momento, vizinhos. Por que desperdiçar o ouro que também temos? Por que não extraí-lo nós mesmos?

EFEITO BURBURINHO

FERMÍN É certo que nem Deus controla as transnacionais, que mudam leis, que subornam políticos, não pagam impostos, fazem o que der na cabeça. Não há quem lhes ponha guiso nestes gatos.

VIZINHA 1 Nestes tigres queria dizer!

FERMÍN Sim, nesses tigres. Com essa gente ninguém pode. Mas, e a mineração artesanal?

VIZINHO Espere, irmão. Eu venho de Tambo Vermelho e lá há mineração artesanal.

Mas a mineração artesanal precisa de leis muito claras para que não se torne também destruidora do ambiente e exploradora dos trabalhadores. Se vão se meter nisso, pensem duas vezes.

GAROTA Dona Lucy… a palavra!

LUCY Diga-me, moça.

GAROTA Dona Lucy, e por que não pensamos em ecoturismo comunitário? Temos paisagens maravilhosas em Killaricocha, podemos receber turistas para caminhar, para excursões na lagoa. Os estrangeiros gostam disso.

GAROTO Sim, companheiros. Dizem que na Costa Rica pararam uma mina de ouro que queriam abrir. E sabem o que mais? Declararam-se um país ecológico e vivem do turismo e vão muito bem.

VIZINHO Não nos esqueçamos de criar trutas. A pesca esportiva é para o turismo também.

VIZINHA 2 Uma rádio, dona Lucy. Anote aí uma emissora. Porque essa Rádio Êxitos não serve nem para tocar o hino nacional.

TODOS Uma rádio?

VIZINHA 2 Sim, uma rádio comunitária. Meu filho tem um amigo que sabe fabricar esses aparelhos, essas antenas. Imaginem todas nós falando em nossa própria rádio?

LUCY Muito boas ideias. Parece que eu estou sonhando. Que soem esses aplausos…

EFEITO APLAUSOS

LUCY Temos já várias propostas muito concretas para nosso plano… alguém mais?

VIZINHA 1 Eu, dona Lucy.

LUCY Fale, vizinha.

VIZINHA 1 Aqui nos falta algo.

LUCY E o que será, vizinha?

VIZINHA 1 Algo para conjurar a maldição. Para livrar-nos da maldição.

VIZINHO 2 Do que a senhora está falando?

VIZINHA 1 Eu nestes dias, em meio a tanta tristeza, me perguntava: por que nos passou isto? Que pecado cometemos? E descobri que a causa é nossa riqueza. É o ouro da montanha, o ouro da lagoa que desatou a ambição dessas empresas. A maldição da abundância. Nossos países não são pobres, não. Foram empobrecidos roubando-lhes as muitas riquezas que tinham.

LUCY E o que propõe, vizinha, para nos livrarmos dessa maldição?

VIZINHA 1 Vamos à lagoa, vamos celebrar a Mãe Terra, a Pachamama, dar-lhe graças por abrir-nos os olhos para ver o perigo. Por dar-nos uma nova oportunidade, uma nova vida.

CONTROLE MÚSICA MUITO EMOTIVA

NARRADORA Já estava escurecendo, quando os homens e mulheres de Killaricocha foram para a lagoa redonda e azul que dá nome ao lugar. Killaricocha, “resplendor da Lua”.

VOZES Vamos, companheiros!… Não fique para trás, companheira!

NARRADORA Iam todos, os grandes e os pequenos, os que votaram NÃO à mina e também os que votaram SIM, porque a dor os tinha aproximado, porque a esperança os havia reunido.

CONTROLE MÚSICA EMOTIVA, PUTUTUS

NARRADORA Rodearam a lagoa, cantaram e dançaram até a noitinha. O mestre Nicanor celebrava também em seus corações. Logo, no horizonte, uma imensa Lua brilhou no céu limpo de nuvens. E as mulheres e os homens de Killaricocha sentiram que já não havia maldição, que estavam abençoados pela Mãe Terra.

CONTROLE MÚSICA EMOTIVA

NARRADORA Os que conhecem a zona, dizem que nunca mais viram aparecer uma empresa mineradora por aquelas terras.

DESCARREGUE O LIVRO: A MALDIÇÃO DA ABUNDÂNCIA DE ALBERTO ACOSTA!
BIBLIOGRAFÍA
15 mitos e realidades da mineração transnacional. Abya Yala, Quito 2012.

A maldição da abundância, Alberto Acosta, Abya Yala, Quito 2009.