116- O INTERROGATÓRIO DO GOVERNADOR

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Era sexta-feira, 14 de Nisan. Um céu de chumbo cobria a cidade de Davi e uma garoa incômoda e contínua ia molhando tudo: os telhados dos palácios, as torres das muralhas, as pequenas cúpulas caiadas das casas dos pobres, os mármores do Templo e as vielas estreitas e com escadas por ponde corria nervosamente o esgoto… Quando os galos anunciaram o novo dia, triste e cinzento, Jerusalém despertou sobressaltada…

Uma mulher: Vizinha, vizinha!… Você já soube? Prenderam o profeta da Galiléia!

Outra mulher: Jesus?

Mulher: Ele mesmo! Está preso.

Mulher: Mas, isso não pode ser… Como é possível?

Mulher: Pois foi o que aconteceu. Escute o que eu digo, vizinha, este país está virado do avesso: os bons na cadeia e os ladrões nos palácios. Vista-se logo e vamos ver o que está acontecendo…!

Os vizinhos avisaram-se uns aos outros…

Um homem: Fizeram o arrastão. Barrabás e Dimas estão presos. Gestas, preso também. E agora estão dizendo que Jesus, o nazareno, foi detido esta noite lá pelos olivais do monte.

Outro homem: Maldição, mas o que os romanos estão querendo? Prender todo mundo?

Homem: Prepare-se, companheiro. Pôncio Pilatos vai torturá-los até que cantem. E, se cantarem, você já sabe, metade da cidade irá de cabeça para os calabouços da Torre Antonia!

Nós também estávamos na rua…

João: Não se desespere, Maria. Eles terão que pôr o moreno em liberdade. Não têm nenhuma prova contra ele.

Maria: Ai, João, não sei, mas estou com tanto medo…

Tiago: Se fizerem algum mal para ele, garanto que até os gatos afiarão as unhas para defendê-lo, você vai ver…

João: Olhe, Tiago, já estão saindo do Sinédrio… Venha, corra…!

As portas do palácio se abriram e os magistrados começaram a sair do Tribunal Supremo, muito empertigados, com suas altas tiaras e seus luxuosos turbantes. Já haviam cumprido sua missão e se dispersaram pelas ruas do bairro alto. Atrás de todos, apareceu o sumo sacerdote, José Caifás. Ia acompanhado de quatro sinedritas e caminhava com muita solenidade. Dali foi direto para a fortaleza romana… Jesus era levado amarrado e rodeado de guardas, que abriam caminho entre as pessoas à custa de gritos e pauladas… A comitiva atravessou a cidade e entrou pela porta ocidental do Templo. As mulheres e o pessoal do grupo íamos logo atrás, empurrando e dando cotoveladas. Diante de nós erguia-se a torre maldita que protegia entre seus muros o governador Pôncio Pilatos. As bandeiras amarelas e pretas de Roma estavam empapadas pela chuva…

Soldado: Alto lá! Quem são vocês? O que querem?

Uma fileira de soldados romanos, imóveis e encouraçados, detiveram os sinedritas. O sumo sacerdote se adiantou em responder…

Caifás: Precisamos ver imediatamente o governador. É um assunto grave.

Soldado: Pode entrar, excelência. E os senhores magistrados também. Mas essa chusma toda, fora.

Caifás: Eles não estão conosco. De qualquer maneira, nem mesmo nós podemos entrar hoje na fortaleza. É véspera do grande sábado da Páscoa. Nossa Lei proíbe. Vai e diga ao governador que se digne a sair um momento e nos atender.

Pouco depois, abriu-se uma janela que dava para a esplanada dos gentios e apareceu Pôncio Pilatos, com os braços cruzados sobre a toga romana, com o rosto por barbear e um esgar de desgosto nos lábios…

Pilatos: Que diabos está acontecendo?… O sol nem acabou de sair e já estão alvoroçando?

Caifás: Ilustre governador, desculpe que o tenhamos incomodado tão cedo, mas acredite, é um assunto urgente.

Pilatos: De que se trata?

Caifás: Deste homem.

Os soldados empurraram Jesus para que Pilatos pudesse vê-lo da janela…

Pilatos: O que acontece com este homem?

Caifás: É um delinqüente.

Pilatos: E quem não cometeu delitos nesse país de bandidos e prostitutas? Julguem-no vocês mesmos. O Sinédrio lhe paga um bom salário como magistrados!

Caifás: Governador, se o trouxemos ao senhor, é porque o assunto é político. Esse galileu se rebelou contra Roma. E compete a Roma julgá-lo. Nós não podemos assinar a pena de morte, que é o castigo que ele merece.

Pilatos: Não podem assiná-la, mas pelo que estou vendo, quase a executaram. Esse homem está muito machucado. Com a autorização de quem vocês maltrataram um prisioneiro político que me pertence?

Caifás: Governador, mil perdões… O detido foi capturado fora da cidade, num lugar chamado Getsêmani. Opôs resistência a nossos guardas e eles, logicamente, tiveram que se defender. Também foram encontradas muitas armas.

Todos: Mentira, mentira! Isso é mentira! Esse homem é inocente! Soltem Jesus!

Soldado: Calem-se, cães!!

A voz tonitruante do centurião romano e as lanças dos soldados que nos ameaçavam, nos fizeram calar. Pôncio Pilatos, da janela, e Caifás, da esplanada, continuaram conversando…

Pilatos: E o que esse indivíduo fazia no Getsêmani?

Caifás: Ele e uns quantos galileus conspiravam contra o senhor, governador. Formam um grupo bastante organizado e perigoso. Ele é o cabeça. Começou a agitar no norte e agora veio fazer o mesmo na Judéia. Também instiga o povo a não pagar os impostos a Roma. Zomba de César e diz que vai se coroar como rei de Israel.

Pilatos: Muito bem. Centurião, traga o detido. Vou interrogá-lo.

Pilatos fechou a janela e desceu para o Lajeado onde celebrava os julgamentos e as audiências. Era um pequeno pátio interno, rodeado de colunas cinzas, onde a tropa também ficava aquartelada. Como chovia, o Lajeado estava vazio. Sob uma saliência de pedra que servia de teto, o governador tinha um estrado e uma poltrona de espaldar alto com a figura da águia romana em cima. Pilatos atravessou o pátio e se sentou. Entretinha suas mãos com o chicote que usava para montar a cavalo. Depois chamou ao seu lado um escriba para tomar a declaração do detento… Dois guardas de escolta fizeram Jesus entrar e fecharam as portas atrás dele. A multidão ficou de fora… Manietado, com a túnica em farrapos, Jesus ficou de pé, debaixo da chuva, entre os dois soldados, frente ao governador… Parecia muito cansado…

Pilatos: Nome, família e lugar de origem… Não ouviu? Perguntei de onde é e como se chama… O que acontece, amiguinho?… Está com tanto medo que travou a língua? Vocês, judeus, são todos iguais, covardes e fanfarrões! Muita conversa no começo e depois, quando chega a hora da verdade, tremem como coelhos… Fale, estou mandando. Não ouviu todas as acusações que trazem contra você?… Vamos, responda!… O que você fez?

Jesus: Todos em Jerusalém sabem o que eu fiz. Pergunte a eles.

Pilatos: Estou perguntando para você! Os chefes de seu povo o colocaram em minhas mãos. Se quiser, posso condená-lo e, se não quiser, posso deixá-lo livre.

Jesus: Você nem me tira nem me dá a liberdade. Você não tem nenhuma autoridade sobre mim.

Pilatos: Ah, é?… Não é que nosso amiguinho tem culhões? Não sabe que agora mesmo posso ditar a sentença de morte contra você?

Jesus: Seria um crime a mais na sua longa lista…

Pilatos: Você não tem medo de morrer?

Jesus: Você é que deve ter medo. Suas mãos estão machadas de sangue inocente. As minhas não.

Pilatos: Claro que não, as suas estão amarradas! E o único que pode desamarrá-las sou eu, está entendendo? Assim, é melhor tratar de falar claramente e dizer a verdade se tiver algum amor à própria pele. Vamos lá, confesse. Está querendo se coroar como rei dos judeus? Tem aspirações ao trono de Israel?

Jesus: Esta pergunta lhe ocorreu ou foram outros que lhe disseram para fazê-la…?

Pilatos. Maldição, com quem você acha que está falando? Eu não recebo ordens de ninguém! E a ninguém devo prestar contas do que faço. Somente ao imperador.

Jesus: Eu muito menos. Somente a Deus.

Pilatos: Vamos lá, amiguinho, diga a verdade: a que grupo você pertence?… É dos zelotas, não é mesmo?

Jesus: Não, não sou dos zelotas.

Pilatos: É dos sicários então?

Jesus: Muito menos.

Pilatos: A que partido você pertence? Confessa! Para quem trabalha?

Jesus: Para o Reino de Deus.

Pilatos: Para o que?…? Não me diga!… E onde está esse “Reino de Deus”? No céu? Estou gostando disso. Vocês que se ocupem de Deus e do céu e deixem a terra para nós.

Jesus: O Reino de Deus está aqui na terra. Está no mundo, mas não se deixa agarrar pelos chefes deste mundo.

Pilatos: É mesmo? E onde está?

Jesus: Escondido.

Pilatos: Só posso rir do trabalho clandestino que vocês fazem…

Jesus: Escondido como o cupim que não se vê, mas que come a madeira por dentro.

Pilatos: Mas, o que vocês está dizendo, imbecil? De que madeira está falando?

Jesus: Da madeira do seu trono. Todo o seu poder virá abaixo, carunchado.

Pilatos: Ou seja, você está confessando descaradamente conspirar contra o poder.

Jesus: Contra os que, como você, abusam do poder.

Pilatos: Anote isso, escriba: conspiração, rebeldia, subversão. E você é o cabeça do grupo, não é mesmo? Reconhece ter agitado o povo?

Jesus: Já faz mil anos que o povo está agitado. É a fome que os agita. A fome e a violência de vocês.

Pilatos: A violência é a de vocês, rebeldes, que ficam esquentando a cabeça do populacho e querem mudar as coisas que não se pode mudar. São vocês que provocam a guerra. Roma quer a paz.

Jesus: Sim, a paz… a paz dos cemitérios.

Quando Jesus disse aquilo, o governador levantou seu chicote e o estalou em seu rosto…

Pilatos: Já chega, maldito!

Jesus: A paz das chicotadas…

Pilatos: Já falei que chega!!

Jesus cambaleou com a segunda chicotada, que lhe deixou um sinal roxo no pescoço. Continuava chuviscando. Os mosaicos brancos do pátio brilhavam com a água… Ensopado, com a túnica colada no corpo e com os cabelos e a barba pingando, Jesus não baixou os olhos diante do governador…

Pilatos: Cachorro galileu, vou lhe arrancar essa língua raivosa. Mas antes, você vai me explicar quais são seus planos. Vamos, fale: o que você estava fazendo no horto do Getsêmani?

Jesus: Nada de mau. Estava rezando.

Pilatos: Rezando, não é mesmo? Está pensando que vou acreditar nessa estupidez?

Jesus: Rezando para que vocês não ganhem. Para que não se faça a vontade de vocês, mas a de Deus.

Pilatos: Rezando e escondendo armas. Vamos, confesse: onde esconderam as armas…? Responda, estou mandando!

Jesus: Aqui… Esta é nossa única arma, a língua… É mais afiada que todas as suas lanças de aço. É a espada da verdade.

Pilatos: A verdade!… Dou risada da verdade!… Eu lhe cortarei a língua de um só golpe e se acabará sua verdade!

Jesus: Terá que cortar mil línguas que fazem fila para gritar na sua cara os crimes que praticou, Pôncio Pilatos.

Pilatos: Cale a boca, insolente! Agora você vai saber o que é a verdade! Escriba, traga-me a lousa! Vou assinar a sentença de morte contra esse charlatão!

Nesse momento, abriu-se uma das portas de ferro que dava para o Pátio. Uma mulher romana, alta e vestida com uma luxuosa túnica de seda azul, apareceu no umbral e fez sinal ao governador… Era sua esposa, Cláudia Prócula…

Cláudia: Pôncio, por favor, venha cá um momento! Preciso lhe falar.

Pilatos: Não me interrompa, Cláudia. Agora não posso. Vai embora.

Cláudia: É muito importante. Eu lhe imploro.

O governador se levantou da poltrona e atravessou depressa o pátio para não se molhar…

Pilatos: Que diabos você quer? Não vê que estou ocupado com esse maldito judeu?

Cláudia: É dele precisamente que se trata. Pôncio, por favor, não assine nada contra esse homem. Ele é um enviado dos deuses.

Pilatos: É um charlatão dos infernos. E um rebelde contra Roma.

Cláudia: Dizem que faz milagres e que o céu o protege.

Pilatos: Bobagens.

Cláudia: Ontem eu sonhei com ele. Foi um pesadelo horrível.

Pilatos: Sinto muito, Cláudia. Mas é meu dever condená-lo à pena máxima. É culpado de conspiração. E isso é um delito grave contra o Estado romano.

Cláudia: Não, Pôncio, não faça isso. Escute o que eu digo, livre-se dele.

Pilatos: Não posso livrar-me dele, Cláudia. Compreenda.

Cláudia: Pode sim. Não dizem que é galileu? Pois mande-o a Herodes. Que Herodes faça o que quiser. Mas não manche suas mãos com o sangue deste homem. Isso nos traria muito azar, tenho certeza.

E o governador Pilatos, que também era supersticioso, deixou a lousa sem assinar e enviou Jesus ao palácio de Herodes Antipas, tetrarca da província da Galiléia, que havia chegado a Jerusalém para as festas. Era cerca da hora tercia…

*Comentários*

As autoridades religiosas de Israel eram cúmplices do poder romano. Nos acontecimentos da paixão deixam claro até que nível estavam atados de pés e mãos aos invasores de seu país. No entanto, pretendem continuar parecendo homens religiosos e cumpridores das leis de Deus. Por isso, Caifás fala a Pilatos de fora, sem entrar no palácio do governador. Se nos dias de Páscoa um israelita entrasse na casa de um pagão ficava contaminado e não podia celebrar a festa. Os sacerdotes eram muito ciosos desta norma, ao tempo em que não têm escrúpulos em assassinar um inocente. Seus ritos religiosos revelam-se assim, como uma casca oca.

O Lajeado (“Lisóstrotos” em grego, “Gabbatá” em hebraico) era um amplo pátio situado no interior da Torre Antônia, onde ficavam os quartéis da guarnição romana responsável pela ordem em Jerusalém. Seu nome vem das grandes lajes que cobriam sua superfície, calculada em uns 2.500 metros quadrados. No evangelho, em vez de se falar de Torre Antônia, faz-se referência ao Pretório como lugar da residência de Pilatos quando estava em Jerusalém. Algumas investigações situam-no, não na Torre Antônia, mas em um dos palácios que Herodes tinha na capital e que emprestava ao governador durante as festas. No entanto, desde muitos séculos a tradição localizou o Lajeado no lugar onde esteve construída a Torre Antônia. Conserva-se um bom pedaço de laje deste tipo nos sótãos de um convento católico situado na chamada “via dolorosa” de Jerusalém. São lajes enormes, desgastadas pelo tempo, com inscrições de caracteres romanos gravadas à faca.

Pilatos foi um homem cruel e ambicioso. De sua gestão como governador da Judéia (ano 26 a 36) há muitas menções dos historiadores. Agripa I o descreve como “inflexível, de caráter arbitrário e desapiedado”. Filon o acusa de “banalidade, roubos, ultrajes, ameaças, acumulação de execuções sem julgamento prévio, crueldade selvagem e incessante”. Há também muitas menções do profundo desrespeito que sentia pelo povo israelita. Sejano, favorito do imperador Tibério, era quem de Roma apadrinhava Pilatos. Sejano também era um homem sanguinário e cabeça do movimento anti-judáico no império romano. Por isso tudo, não é exato historicamente fazer de Pôncio Pilatos um homem culto, embora brando, um intelectual covarde que – atropelado pelas circunstâncias – não teve outro remédio senão condenar Jesus à morte. Não, ele o sentenciou à cruz porque lhe convinha conservar seu posto, ameaçado de alguma forma por aquele homem. A destituição de Pilatos deveu-se, no ano 36, ao massacre que ordenou contra os samaritanos, ato de barbárie que lhe custou o posto. Acredita-se que pôs fim à vida suicidando-se.

Jesus não se atemorizou diante de Pilatos. Da mesma forma que diante das autoridades religiosas, mostrou no julgamento político que era um homem livre. Até o fim foi fiel a algo que havia sido essencial durante toda sua atividade: a denúncia do poder. Não devemos interpretar as palavras de Jesus diante de Pilatos como uma tentativa de diálogo de igual para igual ou como uma conversa de mestre com seu discípulo curioso ou como um encontro de “políticos”que trocam seus opostos pontos de vista. Jesus não pactuou com Pilatos, deixou bem claro diante dele que só Deus tem autoridade.

A frase que o evangelho de João põe nos lábios de Jesus nesta cena – “Meu reino não é deste mundo” – foi freqüentemente mal entendida. Estas palavras não querem dizer que o evangelho não tenha nada a ver com economia, política ou sociedade. “Mundo” no evangelho de João é uma palavra importante e característica. O “mundo” tem seus deuses: o dinheiro e a força. Tem seus métodos: a mentira, a exploração, as armas, a acumulação e lucro. Meu reino não é deste mundo significa, portanto: meu projeto, o projeto de Deus não tem nada a ver com “o mundo”. É outra coisa, é uma alternativa frente a ele. É vida e não morte. É compartilhar e não acumular. É servir e não se impor.

Só o evangelho de Mateus fala da pressão da mulher de Pilatos para que seu marido soltasse Jesus (Mt 27,19). Reflete nisso o sentimento religioso do povo romano, muito supersticioso e dado a temores sagrados, a interpretação de sonhos, a oráculos etc. A inteireza de Jesus, sua contínua referência a Deus, chegaram a preocupar seriamente aquela mulher e mais tarde contagiaram até o próprio Pilatos, também supersticioso (Jo 19, 8). O fato de Pilatos lavar as mãos depois de decidir a sentença é mais um sinal de sua superstição, um sinal de irresponsabilidade e arbitrariedade como governante, que pretende desprender-se assim da injustiça que acaba de decretar.

(Mt 27, 1-2 e 11-14; Mc 15, 1-5; Lc 23, 1-5; Jo 18, 28-38)