124- O GRANDE SÁBADO

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As primeiras luzes da manhã, que se infiltravam por uma estreita janela, nos despertaram lentamente. Aquele sábado, dia seguinte da morte de Jesus, era dia de descanso e de grande festa em Jerusalém e em todo o país. Desde a tarde do dia anterior os onze e as mulheres estávamos escondidos no sótão da casa de Marcos, o amigo de Pedro, esperando para voltar logo para a Galiléia. Os olhos de todos, cansados pela noite ruim e pelo choro, acostumaram depressa à penumbra daquele esconderijo, onde eram guardadas velhas prensas e alguns barris de azeite…

Pedro: Parece que já é dia, companheiros…

João: Conseguiu dormir um pouco, Maria…?

Maria: Um pouquinho, sim… mas…

Madalena: Vamos, deite-se mais um pouco e descanse… Susana e Salomé foram preparar alguma coisa quente… Temos azeitonas e pão… Você não se mexa…

Em seguida minha mãe e Susana trouxeram uma travessa de caldo e um punhado de azeitonas… Sentamo-nos para comer, em silêncio, sem apetite. A tristeza por tudo o que foi vivido no dia anterior pesava sobre nós como um fardo insuportável…

João: Marcos esteve aqui há pouco, quando ainda estava escuro… Foi embora, mas disse que voltará ao meio-dia com alguma coisa para comer…

Madalena: Nem sei para quê, com a fome que a gente está… Vamos, Maria, come um pedaço de pão…

Maria: Não, Susana, não consigo…

Tiago: E o que há de novo na cidade…?

João: En… Encontraram Judas… enforcado…

Pedro: Mas, o que você está dizendo, João? Onde?

João: No Getsêmani… Onde estivemos na noite da quinta-feira… pendurado numa oliveira…

Madalena: Mas, meu Deus, o que foi isso? Um pesadelo? Maldição! Juro por todos os meus falecidos que nunca mais porei os pés nesta cidade do demônio!

João: Calma, madalena… sossegue… É bom não fazer tanto barulho…

André: Coitado do Judas… era um bom companheiro…

Tiago: Não me venha agora com lamentações, André… Ele Foi o Culpado de tudo.

André: Ele, Tiago, ele?… Ele foi um louco que se deixou enrolar, sabe Deus por que… mas ele não foi o único culpado…

João: Já sabemos quem foram os culpados… que Deus pegue todos eles de jeito, canalhas!

Pedro: É verdade, ruivo… Com Judas a gente acabaria se entendendo… Ele era dos nossos… mas com essa cambada do Sinédrio e esses cães romanos… Mas, por que não fizemos alguma coisa? Por que ficamos assim, feito imbecis, com os braços cruzados…? Eu em primeiro lugar, sim, sim, não precisam ficar me olhando, eu em primeiro lugar… Maldição, não valemos nem quatro asses, somos o lixo dos lixos…!

Natanael: Não adianta ficar remoendo, Pedro… Para quê? Tudo se acabou…

A chuva incessante que havia caído sobre Jerusalém na sexta-feira inundou o pequeno terraço que havia sobre o nosso esconderijo. Desde a noite, as goteiras formavam poças no chão…

Susana: Por que não rezamos, heim? Nos maus momentos isso consola muito… Vamos pedir a Deus que venham dias melhores… O que vocês acham?… Maria, quer começar?

Maria levantou o rosto do chão, envelhecido pela dor, e olhou Susana com olhos cansados…

Maria: Não, melhor você começar… Nós a acompanhamos…

Susana: Bem, então… “Senhor nosso Deus, de dia te pedimos auxilio, de noite te invocamos… Vem em nosso socorro…”

Vários: Vem em nosso socorro porque estamos te chamando…

Susana: Estou te esperando, Senhor, responde-me…

Vários: Responde-me porque confio em ti…

Susana: Tu és meu Deus, eu te procuro, atende-me, porque meus inimigos… me fizeram cair numa armadilha…

Custava-nos rezar. As palavras morriam em nossas bocas antes de nascerem, inúteis, carentes de sentido. Sobre o chão, as vasilhas havia ficado pela metade e havíamos comido apenas uns pedaços de pão…

João: O Marcos disse que amanhã de manhã nos levará para a Galiléia pelo caminho da costa… Ele o conhece bem, e por esta rota teremos menos problemas… Além disso, como muitos peregrinos voltarão para o norte no domingo, poderemos nos disfarçar melhor…

Mateus: E… será que não há perigo…? Talvez seja melhor esperar mais alguns dias…

João: Não, Mateus, perigo nós corremos aqui… Com certeza a estas horas já estão nos procurando…

Felipe: Bah, para que vão querer encontrar uma cambada de medrosos como nós?

João: Quererão acabar com o grupo, Felipe…

Tiago: Eles não terão que acabar com nada, João… O grupo já se acabou…

Pedro: Ah, é, cabelo-de-fogo? E por que você acha isso? Ou será que não podemos continuar fazendo coisas juntos?

Tiago: Que coisas, Pedro, diga lá, que coisas…? Cada um irá para o seu lado e… Resultado?

Pedro: Isso não pode ficar assim… Se Jesus começou foi para que fôssemos atrás…

Tiago: Pois vai você atrás, atirando pedras como sempre… e fanfarronando … Ora, isso não serve para nada…

Pedro: E você, heim? Diga lá, e você…?

Tiago: Bah, Pedro, você é um cachorro que late muito mas nunca morde…

Pedro: Eu, não é mesmo? Como se você tivesse feito alguma coisa por Jesus… Escondido pelas esquinas…

Tiago: Está certo, mas… pelo menos…

Pedro: Pelo menos o quê?… Diga, diga de uma vez… Diacho, Tiago! É sempre a mesma coisa… Sim, está bem, eu fui um covarde! Eu disse que não o conhecia! Mas, o que você teria dito se estivesse na mira de uma espada, heim…?

Susana: Pelo amor de Deus, calem a boca de uma vez… Vão brigar hoje também? Será que nem por respeito a Jesus, que descanse em paz, vocês não podem ficar quietos?

Maria, com o olhar perdido para além daquelas quatro paredes, nos ouvia falar e continuava chorando, em silêncio, inconsolável. Estava destroçada… Ao vê-la assim, todas as lágrimas que consegui conter no dia anterior me vieram aos olhos…

Felipe: Vamos, João, homem, não chore… Pense que dentro de alguns dias estaremos outra vez no lago, longe de tudo isso…

João: É por isso que estou chorando, Felipe, é por isso…

Susana: Deixe-o, filho, deixe-o desabafar…

João: Não posso acreditar que voltaremos a lançar as redes, a pescar, a ir à taberna… e que Jesus… como se nada tivesse acontecido… como se tudo tivesse sido um sonho…

Felipe: E foi, pela minha vida, foi mesmo… Digam se não foi um sonho acreditar que o Reino de Deus estava chegando e que nós, uns pedaços de mortos de fome, o estávamos puxando…? Esta é a primeira e última vez que me pegam numa coisa dessa…

Susana: A vida é assim, assim mesmo… Mais amarga que uma amêndoa antes de amadurecer…

Tomé: Por que será qu-que os bo-bo-bons sempre ter-ter-terminam mal?

André: Não isso não terminou, Tomé… Não pode terminar… Será muito difícil que o povo esqueça o moreno…

Susana: Ai, meu filho, com o tempo, tudo se esquece… O tempo se encarrega de apagar tudo…

Pedro: Não, Susana, com Jesus não será assim… Ele era…. diferente… um grande sujeito, Maria, o seu filho… O melhor amigo que já tive em toda a minha vida…

Tiago: Você lembra, quando o conhecemos lá no Jordão, quando João ainda batizava…?

André: Claro, Tiago, como não…

Felipe: E você, Nata…? Fizemos o caminho com ele de Magdala até o rio… Era um grande proseador… Sempre contando histórias e fazendo piadas… Por isso a gente se entendeu tão bem… Por todos os anjos, quem iria acreditar que tudo acabaria assim…?

Mateus: Mas Jesus sim desconfiava… Naquela noite que estávamos em Cesaréia, no norte… Ele já estava preocupado… E também quando viemos a Jerusalém…

Susana: A gente nunca devia ter vindo…

João: O moreno se portou como um valente. Ouvi isso ontem de um soldado… Eles o moeram de pancadas no cárcere, vocês viram como ele ficou, mas não arrancaram dele nenhuma palavra, nem uma…

Pedro: E parece que cantou boas verdades na cara do Anás, aquele ladrão… Seu amigo disse, João que o velho safado não cabia em si de raiva…

André: E fez a mesma coisa com Pilatos e com Caifás… disse-lhes tudo que precisava dizer… Foi o plano que havíamos pensado, lembram?… Depois do que houve no Templo, ir diante dos ricaços de Jerusalém para jogar-lhes na cara os seus crimes… Jesus cumpriu o plano, sozinho…

João: Até o final o moreno… Não o dobraram, não… quebraram-no, mas não o dobraram…

Maria: Por que, meu Deus, por que? Por que não o livraste da morte, por que?…

Até aquele momento, Maria que nos ouvia como ausente, engolindo as lágrimas, rompeu a chorar como um rio que transborda. Inclinava-se até tocar o chão com a testa, com as mãos cobrindo o rosto. Susana e minha mãe a seguravam…

Maria: Por que, meu Deus? Ele era bom… Não tinha que morrer… Eu precisava dele… Os pobres deste país precisavam dele… Por que? Por que?… Ele não merecia uma morte tão horrível… Por que tinha que acabar assim?… Tanta morte, meu Deus, tanto abuso, tanto crime dessa gente… Por que eles ganharam? Estarão agora se banqueteando e meu filho, morto, morto… Até quando, meu Deus, até quando o senhor vai permitir que os injustos levem a melhor?… Até quando…?

Susana: Vamos, Maria, vamos… Traga-lhe um pouco de água, madalena… Vamos, vamos…

Maria, extenuada, recostou sua cabeça em meus ombros, fechou os olhos e sua lembrança voltou outra vez ao dia anterior, ao rosto morto e ensangüentado de Jesus que não voltaria a ver nunca mais…

Tiago: Será que em Cafarnaum já sabem o que aconteceu…?

João: Ainda não houve tempo, Tiago…

Mateus: Não acredite nisso, as notícias voam mais ligeiras que as águias…

Tomé: Te-tem razão…

Pedro: Quando souberem em Cafarnaum que o moreno…

Felipe: Não acontecerá nada, Pedro, nada… As pessoas não vão fazer nada… Nós pobres estamos acostumados a engolir as lágrimas…

Madalena: Pois é isso que nós temos que fazer, caramba, parar de chorar e tocar para frente…E não digo por você, Maria, que tem mais direito que ninguém de chorar o tanto que quiser… Mas eu acho que se Jesus estivesse vivo não quereria nos ver assim, olhando para o chão, choramingando… É preciso fazer alguma coisa… é preciso continuar lutando…!

Tiago: Não grite tanto, madalena! O que você está querendo? Que venham nos pegar?

Madalena: Podem vir me pegar e me matar também! O que me importa? Ele morreu por algo que valia a pena…! Daí, que se é por isso, que me matem também…! Já não me importo com mais nada!

Susana: Mas, filha, o que se há de fazer…? Tudo se acabou… Amanhã vamos lavar o corpo como Deus manda e perfumá-lo como ele bem merece… E depois, voltar par a Galiléia… E que Deus nos ajude! Já não há nada mais a fazer, menina, nada mais…

Foram horas tão longas como anos as que vivemos naquele Grande Sábado de festa, trancados no sótão da casa de Marcos… Nós as passamos todos juntos, ora calados, ora chorando, recordando cada palavra e cada gesto de Jesus, reunido já com seu povo, no silencioso reino dos mortos…

*Comentários*

Nossa fé nos diz que a morte de Jesus não foi o final de sua vida, mas a coroação de sua atividade e o caminho para sua glorificação, que pela cruz passou da morte à vida e que ressuscitou. Deus fez daquele camponês, assassinado pelo império romano e pela instituição religiosa, o Senhor da história, a esperança dos homens. Mas nem os discípulos de Jesus nem sua mãe Maria sabiam disso. Para eles, o acontecido era o final de todas as suas esperanças e o fracasso do projeto do Reino de Deus pelo qual haviam trabalhado durantes meses com Jesus.

Os apóstolos nunca pensaram, nem sequer imaginaram que Jesus poderia ressuscitar, prova disso é que tiveram medo e quiseram fugir para a Galiléia para começar de novo a vida em sua região, sem se preocupar em nada com o Reino. Com a morte de Jesus, deram tudo por terminado.

Às vezes, se afirma simplistamente que Jesus anunciou que iria ressuscitar, e que seus discípulos só se convenceram depois que o viram. Para isso realçam as três predições que Jesus fez de sua morte recolhidas nos evangelhos (Mt 16, 21; 17, 22-23; 20, 17-19). Jesus, que se viu constantemente ameaçado e perseguido durante sua vida pelas autoridades, teve que contar com uma morte violenta e com que seu destino não poderia ser diferente do dos profetas: a perseguição e a morte. Isso não é base suficiente para que digamos que são adivinhos, mas simplesmente que sabem a que se arriscam com sua atitude honesta e valente. Nestas pregações da paixão de Jesus é referido um prazo de três dias, depois do qual “ressuscitaria”. Ao escrever assim, os evangelistas estão interpretando os acontecimentos depois de suceder, depois que eles experimentaram a nova vida de Jesus. Por isso puseram em sua boca essas palavras, para assim dar uma idéia completa do que realmente ocorreu, de tudo o que ia ocorrer.

Por outro lado, é preciso levar em conta que no aramaico “três dias” significa “logo”, “um breve espaço de tempo”. Nas línguas como o aramaico não existe nenhuma palavra equivalente a “vários”, “um par”, “alguns”. A falta dessas palavras era suprida muitas vezes pela expressão “três dias”. Esse “ao terceiro dia ressuscitará” que os evangelistas puseram na boca de Jesus dever ser lido assim: “em muito pouco tempo chegará o Reino”. Para Jesus, esta chegada estava às portas, era algo iminente. Mas ele não podia contar com uma ressurreição nem individual nem imediata.

Neste episódio, a desesperança domina a cena. Há também medo, decepção, pessimismo, recordação admirada de Jesus, mas impossibilidade de encontrar alguma forma de continuar sua obra, desconcerto etc. São todos sentimentos que nascem de uma profunda falta de esperança. Para indicar liturgicamente esse vazio que Jesus deixou com sua morte, não se celebra nenhuma reunião cristã neste dia, o do “sábado santo”. Não há eucaristia, não há assembléia. É uma forma de simbolizar o vazio que Maria, as mulheres e os apóstolos sentiram naquele sábado em Jerusalém, logo após o enterro de Jesus.

Diante da morte daqueles que amamos, nenhuma palavra serve, é difícil encontrar consolo na oração ou nos próprios enunciados de nossa fé. Só fica uma pergunta: Voltaremos a vê-los? Voltaremos a nos encontrar com eles? O nome que anelamos encontrar em Deus nesse umbral da morte é o de Deus que resgata a vida. Só podemos encontrar paz para nossa dor em um Deus que ressuscite nossos mortos, que nos permita abraçá-los de novo.

(Lc 24, 1)