33- A CADA DIA BASTA SUA PENA
Simão: Amarrem-no, amarrem-no!… Não ouviram? Ele perdeu o juízo! Está louco de vez!
O bairro dos pescadores parecia um vespeiro revolto no dia em que os parentes de Jesus vieram buscá-lo, dizendo que estava louco. Os nazarenos, agrupados diante da porta, preparavam cordas para amarrar Jesus enquanto os vizinhos de Cafarnaum gritavam e riam vendo aquela briga de família…
Maria: Não faça isso, primo Simão, espere!… Eu falarei com ele. Deixem-me passar, sou a mãe dele…
Maria foi abrindo caminho entre todos, até chegar à porta da nossa casa, onde estava Jesus…
Maria: Por favor, não façam tanto caso dele!… Meu filho está doente e não sabe o que diz… Está doente…
Jesus: Não, mamãe, sei muito bem o que estou dizendo. Já disse que perderam tempo e perderam a viagem. Eu não volto com vocês.
Maria: Jesus, não me falte com o respeito diante dessas pessoas! Não se envergonha de falar assim comigo?
Jesus: Está bem, mamãe, desculpe… Mas escute-me: encheram sua cabeça com falatórios. Ainda que eles sejam meus vizinhos, eu tenho de dizer: em Nazaré os mexericos crescem como moscas. Eu não sei o que lhe disseram de mim, mas de tudo o que falaram corte a metade, a metade da metade, e ainda lhe sobra.
Simão: Ah, é? Quer dizer que apesar dos disparates que você nos disse antes, agora nos chama de mentirosos, não?
Jesus: Primo Simão, a verdade… uff, a verdade é que você especialmente tem uma língua mais cumprida que um remo.
Maria: Filho, por Deus, o que lhe aconteceu? Como fala assim de seus parentes?… Você já não é o mesmo de antes, Jesus. Você mudou.
Jesus: Acho que foi você quem mudou, mamãe. Antes você me dizia: “Cada um faz o que tem de fazer, digam o que disserem”. E o que aconteceu com você agora?
Maria: Tenho medo, filho, muito medo. Há muitos delatores, muitos soldados. A situação está cada vez pior.
Jesus: Por isso mesmo temos de fazer alguma coisa. E logo. O que você prefere? Que as coisas continuem como estão? Que continuemos olhando como as pessoas morrem de fome ao nosso redor até que chegue a nossa vez?
Maria: Não é isso, Jesus, mas… As coisas se complicam. E amanhã virão me dizer que levaram você preso e…
Jesus: Não se preocupe com o que vai acontecer amanhã, mamãe. A cada dia basta sua pena, você não acha?
Maria: Nestes dias eu me lembrei muito do seu pai, José…
Jesus: Pois que eu me lembre, a família de meu pai não era covarde. Ele escondeu aqueles infelizes quando os soldados os vinham perseguindo. E lhes salvou a vida.
Suzana: Sim, e perdeu a dele. O que você está querendo, moreno? Que sua mãe perca você também?
Maria: Não me faça passar por essa dor, Jesus, eu lhe peço. Por que você não pode ficar quieto em Nazaré, trabalhando, fabricando ferraduras, pregando telhados, ganhando o pão como todo mundo?… Case-se, tenha filhos, que algum dia eu possa ver os meus netos… Por que você não pode ser como todo mundo, Jesus, por que?
Maria esfregou os olhos com um lenço de listas que levava amarrado aos cabelos. Não queria que a vissem chorar. Sentia-se humilhada e envergonhada no meio daquela gente que a rodeava. Os nazarenos zombavam de Jesus, os de Cafarnaum zombavam dos nazarenos. E as coisas doíam muito a ela…
Simão: Não chore por esse vagabundo, prima Maria. Acontece é que seu filho não quer trabalhar, e isso é tudo. Ele quer andar se metendo em política para não trabalhar. Só conversa. Muita conversa e poucas lentilhas. Vamos ver, de que vai viver sua mãe se você não ganha nem para comprar lenha? Você economizou alguma coisa? Tem algum negócio em vista?… Vê lá, você não tem de seu nem sete palmos de terra onde cair morto!… Mas eu vou lhe avisar de uma coisa, Jesus, depois não venha bater na minha porta para pedir-me emprestado. Não lhe darei um centavo, está ouvindo, um centavo!
Jesus: Nunca lhe pedi nada, primo Simão. Trabalho com minhas mãos igual a você. Você não me deve, eu não lhe devo. E minha mãe não come de seu pão nem se veste com suas roupas. Olhe, eu também vou lhe dizer uma coisa: me parece que você se preocupa muito com o prato de lentilhas… com o seu prato, bem entendido. Sim, está certo, há que se ganhar o pão com o suor do rosto. Mas preste atenção nas aves do céu, nos pardais, nas gaivotas do lago, nos canários… Nenhum deles semeia nem colhe, nem têm nada guardado e a nenhum falta o que comer. Quando os vejo, eu penso: será que não valemos mais que os pássaros?
Simão: Sim, continue com suas histórias e suas palavras bonitas. Mas com palavras não se come, está ouvindo?
Jesus: Preste atenção nas flores, primo, nesses lírios brancos e pequeninos que crescem no campo sem que ninguém cuide. Não cosem nem tecem… E quando eu os vejo, penso: nem o rei Salomão, com seus trajes de linho e sua elegância, se vestiu melhor que uma ervazinha destas. Se Deus cuida até da erva que hoje nasce e amanhã seca, como não vai cuidar de nós que somos seus filhos?
Quando Jesus disse aquilo, Simão, seu primo, agarrou o pequeno saco de moedas que levava amarrado à cintura e o fez soar com orgulho. As pessoas se espremeram ainda mais para ver bem a cara dele…
Simão: Olhe, sonhador, olhe… Isso é o que vale. Do resto eu dou risada. Lírios do campo? Passarinhos?… É tudo lixo!… Fique aí olhando o céu, com a boca aberta, olhando os pardais quando passam… Não vai lhe chover pão do céu, mas outra coisa… Não primo, não. Vai cantar essa música em outro terreiro… A vida tem de ser levada a sério.
Jesus: Mas não tanto, Simão…
Simão: O que você quer? Que peçamos comida a Deus, com os braços cruzados?
Jesus: Não, Simão. Tem de trabalhar. Mas tem de ter confiança também. Deus já sabe que precisamos de casa e de roupa e de lentilhas. Se fazemos nossa parte, ele não nos falhará. Mas tem de pensar também na casa e na roupa e nas lentilhas dos outros, dos que têm menos que a gente. Eu acho que se nos preocuparmos mais com o que os outros precisam, do que com o que precisamos, o nosso virá por acréscimo.
Maria: Ai, filho, isso é fácil de dizer… mas quando a vida aperta…
Jesus: Mas, mamãe, foi você mesma que me ensinou. Você me dizia: “é mais feliz quem dá do que quem recebe”. Já não se lembra? “Ajude seus irmãos e Deus ajudará você”, isso você me repetia um dia atrás do outro. Pois eu quero ajudar meu povo a ser livre, ainda que tenha de pagar o preço que pagaram todos os profetas…
Maria: Não fale assim, filho, me dá medo… Jesus, eu lhe suplico, não se meta mais em confusão…
Jesus: Mamãe, eu lhe suplico, não tente agora entortar o caminho que você mesma me abriu. Com medo não se resolve nada. Por mais que você se angustie, não pode fazer-se um palmo mais alta, não é mesmo? Tampouco pode resolver os problemas que ainda não apareceram. A cada dia basta sua pena…
Meu irmão Tiago e eu havíamos ficado dentro de casa para não provocar ainda mais os nazarenos…
Tiago: Veja só que primo tem Jesus… Pela raiva que demonstra, parece até que um cachorro o mordeu!
João: Pois olhe que a Suzana também não fica atrás…
Tiago: E a mãe, nem se fala, com mais lamentações que Jeremias…!
Salomé: E o que mais pode fazer, a infeliz?… É filho dela. Tem de se preocupar e velar por ele!
João: Mas, velha, pelo amor de Deus, um homenzarrão como Jesus, com trinta anos nas costas…!
Salomé: Nem que tivesse sessenta. Para uma mãe, os anos de seus filhos não contam.
Tiago: Claro, e é aí que está o problema, que para vocês nós não crescemos e querem nos segurar a vida toda debaixo das saias.
Salomé: Debaixo das saias não, mas ao lado, sim, porque a gente tem coração, caramba, e se angustia pelas coisas que podem acontecer. Eu até agora tive sorte com vocês dois que me sairam bons e os tenho perto. Mas, quem sabe um dia desses…?
João: Olhe, mamãe, não vamos começar…
Salomé: Não, mas quem começa são vocês. Vocês estão balançando demais da conta desde que chegou esse bendito moreno de Nazaré. Mas me escutem bem, par de malucos, quem se põe a brincar com fogo, acaba chamuscado. Já que estão sabendo, parem de andar politicando, me ouviram? Saiam disso, moleques, olhem que…
Tiago: Está bem, está bem, mamãe, uma briga fora e outra dentro já é demais. Eia, vamos ver que raios está acontecendo na rua…
Quando saímos, o bate-boca dos nazarenos continuava. Simão, o primo de Jesus, tinha começado a impacientar-se…
Simão: Não perca tempo, Maria. Ele está transtornado, está louco. Você não o está ouvindo com seus próprios ouvidos?…
Maria: Jesus, por favor, volte com a gente para Nazaré.
Jesus: Não, mamãe, eu fico por aqui. Estamos tratando de fazer alguma coisa para que você e nós e todos os pobres de Israel alcancemos a herança que Deus nos prometeu.
Maria: Se não quiser fazer por mim… faça ao menos pela memória de José, que descanse em paz. Você não respeita nem ao menos os ossos de seu pai?
Jesus: Meu pai se alegraria por ver tudo isso, mamãe, não acha? Ele não se escondia diante dos perigos, pelo contrário.
Maria: Está me desobedecendo?… Você desobedece sua mãe? Jesus!… Eu lhe digo pela última vez… Eu lhe suplico, venha comigo para Nazaré.
Jesus: Não, não vou.
Maria mordeu os lábios num gesto desesperado. E então se pôs a chorar desconsoladamente…
Suzana: Vamos, Maria, acalme-se… Não fique assim…
Maria: O que você quer que eu faça, Suzana? O que me resta agora?… Tinha um marido e o perdi. Tinha um filho, um só. Também o perdi… O que me resta ainda?…
Suzana: Fique tranqüila, mulher, não pense nisso agora…
Maria: Eu não o entendo, Suzana… Não entendo porque Jesus me faz isso, por que…?
Simão: É porque não tem vergonha. Porque é um rebelde, um desbocado. Vamos acabar com esse assunto de uma vez. Jacó, as cordas!… Se não quer vir pelos próprios pés, que seja arrastado como um animal.
Maria: Não, Simão, não faça isso… Deixe-o… se ele não quer, deixe-o…
Simão: Deixá-lo, prima Maria? Deixar que continue aprontando as suas e que continue metendo-se em política, expondo-nos ao ridículo, e arranjando perigo para todos nós, que somos seus parentes, que depois teremos de pagar por todas as suas velhacarias?… Não, nada disso! Ele volta com a gente para Nazaré, quer queira, quer não!
Simão e Jacó, com duas laçadas de corda na mão, se aproximaram de Jesus que continuava de pé, junto à porta de nossa casa…
Jesus: Eu não estive me metendo em política, primo Simão, mas você está se metendo com o que não é da sua conta. E faça-me o favor de parar de encher a cabeça da minha mãe com seus mexericos e suas intrigas, que isso é a única coisa que você soube fazer em toda a sua vida, intrigar e meter a língua onde não deve! Você não vive e não deixa ninguém viver, caramba!
Simão: Atreva-se a repetir isso, ande… atreva-se!
Jesus: Digo que você está se metendo no que não lhe…
Simão perdeu a paciência e lhe deu um bofetão em pleno rosto. As pessoas que nos rodeavam se amontoaram ainda mais. Jesus, cambaleando, limpou o sangue que começava a brotar do nariz…
Simão: Vamos, lute como um homem!… Ou nem isso você é?… Vamos lá, revide… você que acha que é tão machinho… Defenda-se, covarde…! O que está querendo, ganhar outro pescoção…? Venha, seu porqueira, venha, que eu vou sovar você bem sovado…!
Jesus cruzou os braços e se aproximou de Simão…
Jesus: Primo, eu não tenho nada contra você. Por que não me deixa em paz?
Simão: Vamos lá, brigue comigo…!
Jesus: Não, não vou lhe dar esse gosto… Se quiser pode me bater. Eu não vou revidar…
Simão, com os punhos e os dentes apertados, esperava. Jesus permanecia tranqüilo, sem deixar de olhar seu primo que, uma vez mais, foi quem perdeu a paciência…
Simão: Imbecil… Mais do que imbecil… Sempre pensei que você era pouca coisa… mas você é ainda menos do que eu pensava… Puah!… Vamos embora, Jacó! E que esse traste fique onde quiser!… Andando, que temos muito caminho pela frente!…
Os nazarenos empreenderam o caminho de volta para sua aldeia. Simão e Jacó iam à frente do grupo, dando bastonadas contra as pedras, cheios de raiva… Maria, a mãe de Jesus, ia junto com Suzana, apoiada em seu braço, dando-lhe voltas e mais voltas no coração o que havia acontecido naquela tarde em Cafarnaum…
*Comentários*
O conflito de Jesus com sua mãe se desloca um tanto neste episódio em que enfrenta seu primo Simão. A personalidade materialista e interesseira do primo é uma boa ocasião para enquadrar as conhecidas palavras de Jesus sobre as aves do céu e os lírios do campo, nada fáceis de explicar sem cair numa interpretação alienante. Além disso, estas palavras de confiança incondicional na providência de Deus podem se tornar ofensivas – se não se explica bem – para aqueles que se vêm forçados, dada sua miséria, a viver procurando o que comer e com que vestir-se, premidos por necessidades básicas não satisfeitas.
Certamente se deve “comer para viver” e não “viver para comer”. Mas há situações de pobreza que obrigam o homem a ser “materialista” e a gastar todas as suas forças para conseguir a suficiente comida para cada dia. Esta é a situação das grandes maiorias em nossos países. O que Jesus denuncia não é esta urgência com que os pobres buscam com o que subsistir. Seria contraditório com todo o resto de sua mensagem. Jesus critica a ideologia ambiciosa de quem acumula ou açambarca, o materialismo do avarento, de quem só pensa em si mesmo, em seu benefício, em seu próprio lucro, esquecendo-se das necessidades dos outros. Para ele, que trata de romper o círculo vicioso do ganhar mais, do ter mais e colocar sua vida a serviço da felicidade dos outros, estas palavras de confiança em Deus soam de outra maneira. Aquele que luta pela justiça, em meio a dificuldades também econômicas, deve saber que Deus vela por ele e lhe dará “por acréscimo” o que necessita para continuar essa luta. O ser humano não dever ser uma máquina de produzir. Tampouco uma máquina de consumir. Ter mais pode chegar a ocultar o verdadeiro ideal cristão: Ser mais. Ser mais solidário com os irmãos, ser melhor filho de Deus. Ser mais feliz, dando e recebendo.
A viuvez de Maria acentua seus temores. Em Israel, uma mulher sozinha, sem um homem em casa, era duplamente indefesa. No relato, quando Salomé fala com seus filhos Tiago e João, manifesta uma grande compreensão pela atitude de Maria. Às mães, custa especialmente desprender-se de seus filhos, renunciar a influir sobre eles, aceitar que se vão por caminhos de risco. Para que o filho ao nascer tenha sua própria vida, é preciso cortar o cordão umbilical que o unia a sua mãe. Ao longo de toda a vida, este ato há de repetir-se mais de uma vez entre mãe e filho para que a personalidade dos dois cresça e amadureça.
(Mateus 6,25-34; Lucas 12, 22-34)