37- O GRITO DE LÁZARO

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Aquele ano foi um ano ruim em toda a Galiléia. As tempestades de verão haviam arruinado as colheitas. O trigo perdido, o centeio perdido, os olivais estragados. A fome chegou a cavalo e bateu em todas as portas. E com a fome, chegaram as epidemias e o desespero. Os camponeses vendiam por qualquer preço os frutos das próximas colheitas que ainda nem haviam semeado. Os agiotas faziam das suas e emprestavam dinheiro a juros de 80 e 90 por cento. A cada dia apareciam mais mendigos nas cidades. Também em Cafarnaum…

Jesus: Olhe, João, lá vão eles outra vez…

João: Sim, Jesus, vão sentar-se na frente da casa do latifundiário Eliazim. Assim passam o dia, esperando que joguem o lixo para depois pegarem uma casca de melão ou alguma migalha…

Jesus: Não, não, isto não pode continuar assim!

João: Hoje são os camponeses, Jesus, amanhã seremos nós, os pescadores do lago. E depois, os artesãos. Isso não vai acabar nunca.

Jesus: Vamos com eles, João, vamos para frente da casa do Eliazim…

Um mendigo: Mas, o que você está dizendo, nazareno?… Deus?… Esquece, Deus não nos ouve. Está com as orelhas entupidas.

Jesus: Não, o que acontece é que vocês estão gritando muito baixo, não é verdade, João?

João: É isto mesmo. Venham, vamos todos juntos gritar bem forte até que as pedras se arrebentem!

Jesus: Até que o Deus do céu escute o alarido dos famintos e faça alguma coisa por nós.

Mendigo: Pois então vamos gritar, minha gente…!

Todos: Aaaah…! Aaaah…! Aaaah…!

Jesus: Uma noite, Deus estava descansando lá em cima, em sua casa no céu e Abraão passou em frente à sua porta…

Deus: Ah! Meu amigo Abraão, venha cá…!

Abraão: Pois não, meu Senhor.

Deus: Abraão, o que está acontecendo na terra, pois estou ouvindo tanto barulho? Você não está ouvindo? Escute bem…

Mendigos: Aaaah…! Aaaah…! Aaaah…!

Abraão: É como o ruído de muitos trovões anunciando tempestade. Ou como o rugido de um terremoto que se aproxima.

Deus: Você está enganado, Abraão. Não é nada disso. Escute bem…

Mendigos: Aaaah…! Aaaah…! Aaaah…!

Deus: São lamentos e gritos de homens e mulheres. E de crianças também. Não está ouvindo? São meus filhos, Abraão! Alguma coisa de grave deve estar acontecendo. Vai, desce imediatamente lá na terra e investigue o que está acontecendo. Ficarei esperando impaciente.

Abraão: Às ordens, meu Senhor. Vou imediatamente.

Jesus: E o velho Abraão calçou as sandálias, pegou seu cajado e se pôs a caminho tão rápido e obediente como naquela vez, quando saiu de Ur, na Caldéia, rumo a uma terra desconhecida… Em pouco tempo, Abraão voltou suando à presença de Deus.

Deus: Já voltou, Abraão?

Abraão: Sim, meu Senhor. Estive lá só por alguns segundos, e quase me arrebentam os ouvidos. O alarido dos homens é como uma caldeira fervente, como um vulcão a ponto de explodir. Os gritos são ouvidos nos quatro cantos da terra.

Deus: Mas, diga-me, o que está acontecendo? Por que meus filhos estão gritando?

Abraão: Eles têm fome. Por isso gritam.

Deus: Fome? Não pode ser. Quando eu criei a terra, no princípio de tudo, planejei bem as coisas. O que você está pensando?… Que sou um irresponsável?… Não, eu pus muitas árvores frutíferas, semeei muitas sementes que dão alimento abundante, fiz voar muitas aves no céu e coloquei a nadar muitos peixes nos rios e pus muitos animais de carne saborosa na terra. Tudo criei para alimento do homem. Isso sem contar as riquezas que escondi nas entranhas do mundo e dos mares. Não podem ter fome. Há comida suficiente para alimentar todos os homens que crescem e se multiplicam sobre a terra. Tudo estava previsto, tudo estava bem feito. Por que acontece isso agora?

Abraão: O Senhor se esqueceu de um detalhe.

Deus: Qual, Abraão?

Abraão: Os próprios homens. Acontece que eles começaram a repartir a terra… compreende?

Deus: Creio que sim… “Quem parte e reparte fica com a melhor parte”, não é isso?

Abraão: Exatamente. Foi isso que fez um pequeno grupo. Ficou com tudo. Tem toda a comida estocada em seus armazéns.

Deus: E os outros, fazem o quê?

Abraão: Os outros ficam gritando, sentados à porta das casas dos ricos, esperando que joguem o lixo pela janela, para pegar os restos e comê-los. Têm muita fome.

Deus: Não posso acreditar no que você está me dizendo, amigo Abraão… É isso que meus filhos fazem na terra?

Abraão: Exatamente isso, Senhor.

Deus: Quando ouço estas coisas, Abraão, perco a paciência. Fico tão furioso que tenho vontade de chamar todas as nuvens do céu, como já fiz uma vez nos tempos de Noé, e dar-lhes ordem de dilúvio, que chova sem parar até afogar a terra. Porque fico envergonhado de ter uns filhos assim, que não têm um coração de carne, mas uma pedra escondida no peito.

Abraão: E o que podemos fazer, meu Senhor?

Deus: O que podemos fazer?… Por acaso não sou eu o juiz do céu e da terra?… Miguel, Rafael, Gabriel e Uriel, venham cá, agora mesmo!

Jesus: Os quatro arcanjos se apresentaram num piscar de olhos…

Deus: A terra está sob juízo. Desçam agora mesmo até um desses que gritam de fome e peguem sua declaração. Tragam-me também um desse grupinho que está se banqueteando, desses que têm as tripas cheias e os armazéns cheios também. Quero interrogar os dois. Vão, depressa!

Jesus: Os arcanjos deram meia volta e desceram ligeiro à Terra. E se aproximaram de onde vinha a gritaria. Miguel e Rafael agarraram pelos ombros um daqueles que morriam de fome. Gabriel e Uriel fizeram o mesmo com o rico que também morria, mas estufado… E os dois foram levados diante do tribunal de Deus.

Deus: Está aberta a sessão. Vejamos, você primeiro, como se chama?

Lázaro: Lázaro, Senhor.

Deus: Você é um daqueles que estavam gritando lá em baixo, não é verdade?

Lázaro: Sim, Senhor.

Deus: E posso saber por que você e seus companheiros faziam tanta gritaria?

Lázaro: Porque nossos filhos morrem de fome, porque nossas mulheres têm os peitos secos, sem uma gota de leite para alimentá-los. Porque os joelhos de nossos homens tremem depois de sete dias sem comer. Por isso gritamos. Gritamos dia e noite até que a justiça seja feita. Olhe para mim, Senhor, olhe como estou… O Senhor pode contar cada uma de minhas costelas… Formam-se feridas aqui e ali, onde os ossos não encontram carne e arrebentam a pele esticada… Então vem os cães a lamber-me e eu deixo porque a saliva do cachorro alivia a ferida da fome.

Deus: Não diga mais nada, filho. É o suficiente… Você, Abraão, quer fazer alguma pergunta?

Abraão: Você diz que tem fome… Mas alguns acham que isso acontece porque vocês não gostam de trabalhar. Porque são preguiçosos.

Lázaro: Não, pai Abraão, não acredite nessa história. Toda nossa vida não foi mais que suor e trabalho, dobrar o lombo como os animais. Mas são eles, os ricos, os que bebem nosso suor e chupam nosso sangue. Eles nos espremem como uvas no lagar. Nos esmagam como azeitonas sob a pedra do moinho. São eles que têm recolhido tudo e nem as migalhas de sua mesa nos deixam comer.

Jesus: Deus tinha os olhos marejados ouvindo a declaração do pobre Lázaro. Quando acabou de falar, Deus se levantou, avançou alguns passos e encarou o rico…

Deus: E você, quem é?

Epulão: Eu me chamo Epulão.

Deus: O que você tem a dizer diante do que meu filho Lázaro declarou?

Epulão: Bem, francamente, eu não sabia nada disso, eu não…

Deus: Você sabia, sim…! Ou você é surdo? Não, você ouve perfeitamente. Por que não escutou os gritos de todos aqueles que estavam sentados diante de sua porta, berrando de fome, pedindo que compartilhasse com eles o que lhe sobrava?… Eu os escutei daqui do céu, e você não os ouviria já que estava junto deles?

Epulão: Senhor, eu… sabe o que é?… Na festa havia muito barulho e… não conseguia ouvir.

Deus: Mentiroso! Agora sim você vai ouvir. Abre bem as orelhas porque vou dar minha sentença: você é acusado de assassinato, rico Epulão; é acusado de haver matado de fome seus irmãos ou de deixá-los morrer, o que dá no mesmo.

Epulão: Mas, Senhor, a fazenda era minha, o trigo era meu, os armazéns eram meus, de minha propriedade… por que tinha de dar o que é meu a este cujo nome eu nem sei?

Deus: Meu, meu, meu! Com que direito você chama de seu o que não é seu? O mundo e tudo o que há nele fui eu quem fiz. Eu o criei desde o princípio. É meu. E eu o empresto a quem eu quiser. Quem é você? O que você tem que não haja recebido? Nu você saiu do ventre de sua mãe e nu voltará para o ventre da terra… A única coisa que é sua é a cinza, esta é sua única propriedade.

Epulão: Tenha piedade de mim, Senhor, tenha piedade de mim…

Deus: Você nunca teve piedade de seus irmãos. Quis ficar sozinho, e ficará sozinho para sempre.

Deus: E você, Lázaro, venha descansar. Já sofreu bastante.

Lázaro: Não posso, Senhor. Como vou descansar, sabendo que meus companheiros continuam gritando lá em baixo?… Não os ouve?

Deus: Tem razão, filho… pensando melhor, sabe o que vou fazer? Vou descer com você à Terra. Abraão!

Abraão: Às ordens, meu Senhor.

Deus: Abraão, empreste-me suas sandálias.

Abraão: Sim, meu Senhor.

Deus: Você ficará aqui em cima, Abraão. Aqui há paz e glória. Mas a Terra é um inferno por causa do egoísmo de uns contra os outros. Eu faço mais falta lá em baixo, no meio da gritaria dos meus filhos.

Abraão: Mas, Senhor, ficou louco? Como vai deixar vazia sua casa aqui no céu?

Deus: Não importa. Minha casa está lá em baixo, com os que não têm casa, com os milhares de lázaros como este que não têm nem onde reclinar a cabeça. Vamos, Lázaro, depressa! Vamos começar um Reino de Justiça para os pobres do mundo. Eu estarei com vocês hoje e sempre, todos os dias, até que as coisas mudem.

Um mendigo: Mas as coisas não mudaram, amigo. Cansamos de gritar e, olhe só… a porta do latifundiário continua fechada. Dom Eliazim é sovina e cruel como o rico da sua história.

Jesus: Bah! Dele e de gente como ele não há muito que esperar. Mas olhem, outras portas se abriram… Ei, dona Ana, venha cá um momento!

Uma vizinha: O que foi? Que gritaria estão fazendo, heim? Estão arrebentando meus ouvidos.

Mendigo: Estamos com fome.

Vizinha: Bem, na verdade eu também não tenho muito, mas… Vamos ver se colocamos um pouco mais de água na sopa!

O velho Samuel também abriu sua porta. E Joana, a mulher de Lolo. E Débora. E o corcunda Simeão…

As portas dos pobres se abriam para receber outros mais pobres que eles… Sim, o Reino de Deus estava perto de nós…

*Comentários*

Na Palestina, como no resto do mundo antigo, as catástrofes naturais – que o homem não sabia nem prevenir nem dominar – eram causa de grandes carestias que açoitavam periodicamente o país. Fortes secas, furacões, chuvas torrenciais destruíam as colheitas, principal fonte de renda para a maioria da população. Situações assim determinavam uma forte subida dos preços dos alimentos básicos. Aumentavam os mendigos nas cidades e nos caminhos. Os especuladores e atravessadores tiravam vantagem da situação. Exatamente igual ao que acontece hoje em dia.

Em todas as culturas existem contos nos quais se descreve a mudança de sorte que experimentarão os homens no mais além. São uma forma de expressar a rebeldia popular diante das injustiças da história. Baseando-se em narrações desse tipo, Jesus contou a parábola do rico Epulão (opulento) e do pobre Lázaro. Entra na série das parábolas nas quais quis mostrar aos seus ouvintes, de uma forma dramática, as exigências de justiça que tinha o Evangelho. O nome de Lázaro – que significa “Deus ajuda” – tem importância na parábola: Deus ajuda o pobre, por mais que na vida tenha sido “o que não conta”.

Na parábola, Deus põe em juízo, na pessoa de Epulão e de Lázaro, os ricos e os pobres. E ao ouvir as razões dos dois, toma partido de Lázaro. A dor dos pobres é a dor de Deus. Ao contrário, o rico é surdo a esse grito de angústia. A riqueza endurece o coração do homem e tapa seus ouvidos. Por isso o rico não pode entrar no Reino de Deus – que é um reino de igualdade – se não renuncia a suas riquezas.

No mundo atual, há alimento suficiente para que todos os homens de todos os países possam comer bem. E há suficiente matéria prima para que cada família possa viver uma vida digna. É falso que o mundo esteja super povoado. A maioria dos países do Terceiro Mundo está vazia. É falso também que seja a quantidade da população a causa da pobreza de tantos milhões de pessoas. A causa da pobreza das maiorias é a excessiva riqueza de uns poucos. A muitos falta, porque a alguns sobra. Deus não tolera esta situação. Ele fez o mundo, suas riquezas, seus frutos, suas minas, em abundância para que fossem suficientes a todos. Mas a ambição de uns poucos acentua dia a dia a diferença entre ricos e pobres. Os alaridos dos pobres – gritos de angústia, de protesto e de rebeldia – chegam aos ouvidos de Deus. E sua forma de responder é tomar partido por sua causa. Deus fica do lado dos pobres e também luta por eles. A causa da libertação dos pobres deste mundo é a causa de Deus. Sempre que se consegue uma maior igualdade entre os homens se faz realidade o evangelho de Jesus.

Ainda que a parábola fale do além, da justiça que Deus fará na outra vida, a mensagem constante do Evangelho é para agora, para o aqui. Por isso, neste episódio, Deus coloca as sandálias de Abraão e desce à terra para começar a libertação dos famintos: Este é Jesus, o mensageiro de Deus, o porta-voz da pressa que Deus tem em fazer andar seu plano de repartir os bens da terra com todos os seus filhos.

Ser cristão é deixar de dizer: “Isto é meu” para dizer: “isto é nosso”. O rico se obstina em defender sua propriedade. Ao fazer isso, contradiz o projeto de Deus. Dizia Santo Ambrósio: “Tu não dás ao pobre do que é teu, mas devolves o que é dele. Pois o que era comum e que foi dado para uso de todos, tu o usurpaste. A terra é de todos, não só dos ricos”. (Livro de Nabuthe). Ser cristão é compartilhar, criar comunidade, também de bens. O pobre é mais livre e está sempre mais capacitado que o rico para pôr em comum com outros o pouco que tem e para aprender a dizer “nosso”.

Esta parábola foi utilizada comumente para falar do inferno e de um Deus cruel que nega até uma gota de água ao rico Epulão, que quase se converteu ao ver os castigos que o esperavam… Jesus não quer meter medo com as chamas do inferno, nem apresentar um Deus vingativo. O que ele quer é mostrar a severidade, a radicalidade do juízo de Deus que não se deixa enganar pelas desculpas do rico. E deixar bem claro que no Reino de Deus não há lugar para os que fecham suas entranhas à miséria de seus irmãos: só os que compartilham seu pão com os famintos terão um lugar junto a Deus.

(Lucas 16,19-31)