46- O JEJUM QUE DEUS QUER

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Tomé e Matias, os mensageiros enviados pelo profeta João, da cadeia de Maqueronte, se hospedaram na minha casa. Naquela tarde veio muita gente. Todos estávamos ansiosos para escutar suas notícias. Depois, quando se fez noite, nós do grupo, ficamos para comer. No chão, com as pernas cruzadas sobre a esteira, esperávamos que Salomé aparecesse com a sopa…

Pedro: Humm! Esses cheirinho está bom demais!

Salomé: Enfiem a concha até o fundo, que os melhores pedaços de peixe estão lá!

Salomé pôs no meio de todos um caldeirão grande e fumegante. O aroma da sopa encheu toda a casa…

Salomé: Zebedeu, meu velho, um pouco mais de educação! Deixe os hóspedes se servirem primeiro…!

Zebedeu: Tem razão, mulher… É que estou com uma fome que não espero nem por Deus…!

Salomé: Vamos, rapazes, Tomé e Matias, não tenham vergonha…

Matias: Não, primeiro vocês. Vocês começam e nós vamos atrás.

Tomé: Não vão aben-aben-abençoar o pão?

Zebedeu: Caramba, é verdade. Venha, Tiago, diga aí a benção…

Tiago: Deus de Israel, nos dás ao mesmo tempo a comida e a vontade de comer. Abençoa pois esta mesa, amém.

Todos: Amém.

Zebedeu: Vamos, rapazes, finquem o dente em um bom rabo de peixe para que possam dizer na Judéia o que todos já sabem na Galiléia: que não há melhores dourados que os de Cafarnaum!

Matias: Vocês começam, seu Zebedeu…

Zebedeu: Imagine, claro que não, Matias. Começe você. Não é que tenha muito, mas pelo menos está quente.

Tomé: Não, não, você pri-pri-primeiro…

Tiago: Talvez os hóspedes não gostem de peixe…

Tomé: Sim, gostamos, mas não po-po-podemos comê-lo.

Salomé: Não podem comê-lo?… Estão com dor de barriga?

Matias: Não, não é isso, é que… que não podemos comê-lo.

Pedro: Mas, por quê? Quem lhes disse que não podem?

Matias: Nós mesmos.

Tiago: Vocês?

Matias: Bom, é que Tomé e eu fizemos um voto de não comer peixe nem nada que venha do mar até voltarmos sãos e salvos para Judéia, depois da viagem.

Tomé: Deve-se fazer pe-pe-penitência.

Pedro: Ah, claro, claro… entendi… que coisa…

Zebedeu: Bom, homem, isso não é problema. Na minha casa os hóspedes mandam! Salomé, mulher, mate uma galinha para eles. Anda, ligeiro… E traz umas azeitonas para ir entretendo a boca…

Salomé: Já vou, velho, já vou…

Zebedeu: Não se afobem. Num instante já estará depenada e no outro fervida!

Matias: Não, não, não faça isso, dona Salomé!… Não se incomode… Espere…

Tomé: Tam-tam-tam…

Zebedeu: Qual é o tam-tam agora?

Tomé: Tam-também não po-podemos comer carne.

Pedro: E… e por que não podem comer carne?

Matias: Porque estamos jejuando. Até que passe a festa da Páscoa, prometemos não provar nem um pedaço de carne…

Tomé: Deve-se fazer pe-pe-penitência

Todos nós ficamos em silêncio, com os olhos fixos no caldeirão fumegante que nos deixava com a boca cheia d’água. Mas ninguém se atreveu a estender a mão para servir-se…

Tiago: Bem, companheiros… Então… então vamos passar da comida para bebida, o que acham? … Isso, velha, traga um par de jarras de vinho para celebrar este encontro e… vocês também não tomam vinho?

Tomé: Juramos não pro-pro-provar uma gota de vinho até que o pro-pro-profeta João saia da cadeia. Deve-se fazer pe-pe-pe…

Zebedeu: Penitência, claro. Deve-se fazer penitência… Agora entendi porque este moço ficou com a língua seca, nem come nem bebe…

Salomé: Cale-se Zebedeu, não seja mal-educado. São nossos hóspedes.

Zebedeu: Claro, claro… e na minha casa os hóspedes mandam…

O ambiente ficou muito tenso. Todos nós baixamos os olhos e começamos a brincar com os dedos entre as mãos, ou a coçar a barba, ou a comer as unhas… Foi Jesus quem rompeu aquele pesado silêncio…

Jesus: Ouça, Salomé, esta sopa vai esfriar, não é? Humm… Que cheiro bom!… Vamos ver que gosto tem… “Os melhores dourados, os de Cafarnaum”… Está bom, sim… saboroso, puxa vida… muito gostoso…!

Jesus tinha metido a concha no caldeirão, tinha tirado do fundo uns bons pedaços de peixe e tinha enchido o prato de sopa até as bordas. Logo pegou uma fatia de pão e começou a comer sem cerimônia… Todos nós ficamos assombrados. Meu pai Zebedeu, da outra ponta da esteira, olhava o prato de Jesus com a boca aberta e com os olhos amarelos de inveja…

Jesus: Salomé, pode me servir um pouco de vinho?

Jesus se esticou até onde estava Salomé, que esperava como uma estátua, com uma jarra de vinho em cada mão…

Jesus: Tenho a garganta mais seca que uma telha… Ahhh…! “O melhor vinho, o de Cafarnaum”, deve-se dizer isso também… Salomé, sirva-me mais um pouco… Obrigado…

Aquilo acabou com a paciência do meu pai…

Zebedeu: Ao diabo com todos vocês!… O que está acontecendo nesta noite aqui, hein…? Comemos ou não comemos?

Jesus: Você está com fome, Zebedeu?

Zebedeu: Mas é claro que estou com fome! Já sinto umas agulhadas nas tripas… Pontadas, beliscões, torcidas… E você aí, comendo todo tranqüilo, chupando até os espinhos!

Jesus: Pois então coma também, homem. Quem o proibiu?

Zebedeu: Ninguém, mas como este cara veio com essa história de que deve-se fazer “pe-pe-penitência”…

Salomé: Zebedeu, não seja grosseiro com os convidados!

Zebedeu: Claro, claro, os convidados… claro. Todos estamos convidados a fazer penitência para que o profeta João possa sair do calabouço, não é isso?

Jesus: Tomé, você acha que Herodes, aquela raposa, vai soltar o profeta mais rápido porque você deixou de comer um pedaço de peixe?

Tomé: Herodes não, ma-ma-mas Deus…

Jesus: Deus?… Deus já está contente em ver vocês indo e vindo da cadeia para visitar o profeta e levar-lhe o que necessita…

Tomé: Isso não basta. Deus também manda castigar o corpo para pu-pu-purificar o espírito.

Jesus: Tem certeza de que Ele manda fazer isso?… Sei não, parece que você imagina Deus… muito sério.

Salomé: E você, Jesus, como imagina que Deus seja?

Jesus: Não sei, mais alegre… Como te direi?… Sim, isso, alegre. Muito alegre. Diga-me, Salomé, o que há de mais alegre nesse mundo?

Salomé: Para mim o mais alegre é um casamento.

Jesus: Pois então Deus se parece com um noivo. Com o noivo desse casamento. E ele nos convida para sua festa. E você chega e diz: não danço, não como, não rio. Escute, então porque veio à minha casa?

Zebedeu: Bem dito, Jesus! Você me tirou um peso da consciência!

Pedro: Então companheiros, ao ataque!

Tomé: Um momento, um momento!… A coisa não é tão-tão-tão simples.

Zebedeu: O que é agora? Pelo umbigo que Adão não teve, o que é agora?

Matias: Vocês façam o que quiserem. Mas João batista disse claramente, tão claro como a água do rio: temos de nos converter, de nos arrepender, de nos sacrificar!

Todos nós ficamos tesos, Pedro, com a concha levantada. André e Tiago, com as mãos no ar, estendidas na direção do caldeirão de sopa. O velho Zebedeu, que já tinha mordido um pedaço, e se dispôs a engoli-lo de uma só vez, sentiu um nó na garganta…

Tomé: Se não fazemos sacrifícios, não po-po-podemos elevar-nos até Deus.

Jesus: Você acha, Tomé? E como é que as árvores crescem e se elevam até o céu, então?

Tomé: Não entendi, Je-je-jesus.

Jesus: Veja, eu vou lhe contar uma coisa que aconteceu comigo quando eu era menino. Eu tinha semeado na frente da minha casa umas sementes de laranja. As sementes se firmaram bem e a plantinha começou a crescer. Mas eu tinha pressa. Eu queria ver logo a flor branca da laranjeira e arrancar umas laranjas maduras…

Rabino: Mas, Jesus, menino, que está fazendo?

Menino: Esticando a planta.

Rabino: Mas, você não vê que é uma planta muito pequena?

Menino: Por isso mesmo, rabino. Eu estou ajudando a planta crescer.

Rabino: Você está causando dano a ela. Com esses puxões ela secará. Deixe-a quieta. A laranja não precisa que pense nela nem que lhe puxe os ramos para crescer… Ande, vai dormir, que já é tarde e Deus fez a noite para gente descansar…

Jesus: E enquanto eu dormia e enquanto eu trabalhava, a plantinha foi se convertendo em árvore e a árvore deu flores e frutos a seu tempo…

Pedro: Então…

Jesus: Então eu penso que o Reino de Deus se parece a uma semente que cresce e cresce sem que nós estejamos encima dela dando esticadas, jejuns, promessas, penitências… Vocês não acham que podem acabar arrancando a plantinha?

Salomé: O que eu acho, Jesus, é que a vida já tem sacrifícios demais para que a gente fique inventando outros mais.

Zebedeu: Sim, senhor. Falem de jejum para o Seu Eliazim e a todos esses ricaços. Que nós já passamos jejuando todo o ano por conta deles. Vamos, rapazes, metam a concha antes de que isso esfrie!

Tomé: Um momento, um momento! Ainda não estou con-con-convencido…

Zebedeu: Escute aqui, língua de trapo, acabemos de uma vez com esse assunto, porque já estou por aqui com você. Vai ou não vai deixar a gente comer, hein?

Tomé: Eu digo que-que-que…

Nesse momento, o cego Dimas se aproximou da porta…

Dimas: Que Deus abençoe a mesa e a todos os que estão nela! Dona Salomé, não sobrou por acaso algum pedaço de pão para este pobre infeliz?

Salomé: Hoje sobrou tudo, velho Dimas. O que você quer?… Pão, vinho, ou peixe?… O que você prefere…

Dimas: Bom, pois se você tem a bondade de me dar alguma coisinha…

Salomé: Venha, Dimas, entre e sente-se à mesa conosco… Já vou lhe servir um bom prato de sopa…

Dimas: Obrigado, obrigado… A verdade, meus filhos, é que estou com uma fome…!

Zebedeu: Não será maior que a minha, velho. Mas de toda maneira, bom proveito…

Dimas: Obrigado, filho, obrigado…

Zebedeu: Enfim, os de fora vêm, se sentam e comem. E nós aqui, esperando que o condenado desse gago solte seu sermão. Para mim acabou, senhores. Estou indo pra taberna.

Jesus: Não, Zebedeu, espere. Não é preciso que se vá. Não percebe? Você já cumpriu com o jejum. Olha o velho Dimas. Este é o jejum que agrada a Deus: “compartilhar o teu pão com o faminto e receber em tua casa aos que não têm teto”… Porque Deus não quer que passemos fome, mas que lutemos para que outros não a passem. Isto foi o que pregou o profeta João e todos os profetas. Não é verdade, Tomé?

Tomé: Bom, é que-que-que…

Pedro: Que enquanto esse dá o arranque, nós vamos nos servindo!

E desta vez todos nós metemos a concha no caldeirão grande. Jesus encheu novamente o seu prato porque naquele tinha trabalhado duro e tinha muita fome. E Matias e Tomé comeram peixe e beberam vinho e riram muito com o velho Dimas que começou a contar histórias do tempo em que era pescador no lago…

*Comentários*

Na Bíblia, o jejum aparece como uma forma de humilhação do homem ante a Deus. Era praticado para dar mais eficácia à oração, em momentos de perigo ou prova. Havia dias de jejum, nos quais a lei religiosa determinava que todo o povo devia abster-se de comer, em memória de grandes calamidades nacionais ou para pedir a ajuda divina. Também se podia jejuar por devoção pessoal. No tempo de Jesus, essa prática estava ganhando cada vez mais importância. Os fariseus e os homens piedosos tinham costume de jejuar duas vezes por semana: às segundas e quintas-feiras. João Batista, que foi um profeta de grande austeridade, certamente inculcaria em seus discípulos a necessidade do jejum. E por isso, Matias e Tomé aparecem neste episódio como fiéis observadores deste costume. O jejum, como outras devoções religiosas, foi criticado duramente pelos profetas de Israel. Tinha se convertido em uma espécie de chantagem espiritual pela qual os homens injustos pensavam conquistar a graça de Deus, esquecendo o essencial da atitude religiosa: a justiça. Com o culto, com incenso e orações, com duras penitências, buscavam obter méritos ante a Deus e assim salvar-se. Os profetas clamaram contra esta caricatura de Deus e da religião e deixaram bem claro qual é “o jejum que Deus quer”: libertar os oprimidos, compartilhar o pão, abrir as portas das prisões (Is 58, 1-12). Jesus consagrou definitivamente esta mensagem profética.

Uma equivocada idéia religiosa pode nos fazer crer que Deus gosta mais da gente ou nos concede mais favores se fazemos penitências. Às vezes, não há nisto má intenção. Quando o ser humano se sente doente, quando está diante de um grande problema que não sabe como resolver, quando tem medo, recorre ao céu. E como estas crenças, nascem as promessas (peregrinações, votos, rezas…), os sacrifícios (o jejum, outras mortificações do corpo, os cilícios, as flagelações…). Mas todas estas práticas refletem uma idéia de um Deus realmente horrível: Deus seria um sádico que só se aplaca com nossas dores, que só se abranda quando nos vê sofrer. Este Deus não se parece em nada coom o Deus da Bíblia, com o Deus de Jesus. Parece mais com estes ídolos de pedra diante dos quais os homens primitivos sacrificavam animais para que o cheiro do sangue acalmasse a sua ira. O Deus de quem falou Jesus, o Deus a que ele chama “papai” não quer nos ver sofrer, não quer nos ver com medo, deseja que sejamos livres, nos compreende e nos espera. É um Deus que não se compra, quer que o amemos. Só pede de nós justiça e humildade: que não nos sintamos superiores nem inferiores a ninguém. (Miquéias 6, 8).

Para tirar da mente de Tomé, Matias e dos demais essa idéia mercantilista do mérito, de que com esforços se conquista a Deus, Jesus conta neste episódio a parábola da semente que cresce sozinha. É uma forma de dizer que devemos ser humildes, que não pensemos que depende de nós a salvação. Que durmamos tranqüilos, com a certeza de que Deus vela por nossa vida. Isto não está em contradição com o trabalho que Deus nos confia de transformar a história. É um complemento necessário. Trabalhar, mas sem afobação, com a confiança de que o mais interessado em que nosso trabalho frutifique é o próprio Deus. E sem egoísmo, sem nos preocuparmos tanto com a nossa sorte ou pela de nossos irmãos.

Na primeira comunidade cristã aceitou-se a prática do jejum como uma preparação para a eleição dos dirigentes da Igreja (At 13, 2-3). Mas em nenhuma das cartas dos apóstolos se menciona o jejum. Depois, na civilização cristã, com o passar dos séculos, se impôs esse costume. Deve-se ter em conta que o jejum é uma prática habitual em muitas religiões orientais, como uma medida higiênica para manter a saúde. Considera-se que jejuar uma vez por semana pode ser benéfico para o bom funcionamento do corpo. Isto é recomendado por muitos médicos hoje em dia. A abstinência (deixar de comer carne e comer peixe em seu lugar), costume que durou até os nossos dias, tem uma origem mais econômica que religiosa. No século XII era necessário dar saída, nos mercados europeus, a grandes quantidades de peixe salgado que eram armazenadas nos mosteiros, os quais tinham o monopólio deste produto. Daí, a lei religiosa da abstinência. São só dois exemplos, mas indicam que sempre devemos analisar e tratar de saber de onde vêm estas práticas de penitência. Nenhuma delas tem suas raízes em Jesus. A mensagem do evangelho é exigente, mas não nestas coisas. Exige justiça, igualdade, liberdade. De Deus, Jesus ressalta a misericórdia com os pecadores e seu amor especial pelos miseráveis, jamais sua mesquinhez com relação aos méritos que podemos acumular. Jesus foi um homem alegre, a quem os que jejuavam acusaram de beberão e comilão. E nos disse que o Reino de Deus era semelhante a um banquete, a uma boda, a uma festa. Isto sim que é autenticamente cristão.

(Mateus 9, 14-17; Marcos 2, 18-22 e 4, 26-29; Lucas 5, 33-39)