49- NA CIDADE DO REI DAVI
Ainda era muito cedo quando nos pusemos a caminho. Atrás de nós, o sol começava a acariciar o lago redondo e azul da Galiléia que refletia os primeiros raios. Junto com ele, preguiçosamente Cafarnaum despertava do sono. Mas não volvemos a cabeça para dizer adeus à nossa cidade. Só tínhamos olhos para Jerusalém. A alegria da Páscoa enchia nossos corações e nos fazia andar depressa…
Pedro: Vamos, companheiros, amarrem bem as sandálias e firmem seus bastões, pois ainda temos três dias de estrada pela frente!
Na primeira noite acampamos em Jenin. Depois, tomamos o caminho das montanhas até Guilgal… Logo seguimos pelas terras secas e amareladas da Judéia… Nossos olhares saltavam de colina em colina buscando algum indício da cidade santa para onde estávamos indo… Subitamente, todos nós demos um grito de alegria…
João: Corram, corram, já dá pra ver a cidade!!
Num certo ponto da caminhada, à altura de Anatot, apareceu resplandecente à nossa frente. Sobre o monte Sion brilhavam as muralhas de Jerusalém, seus palácios brancos, suas portas reforçadas, suas torres compactas… E no centro, como jóia maior, o templo santo do Deus de Israel.
Pedro: Que viva Jerusalém e todos os que vão visitá-la!
Jerusalém, cidade da paz, era a noiva de todos os israelitas: capital de nosso povo, conquistada pelo braço astuto de Joab mil anos antes, onde o rei Davi entrou dançando com a Arca da Aliança e onde o rei Salomão construiu, mais tarde, o templo de cedro, ouro e mármore que foi admirado por todo mundo…
As últimas milhas de estrada seguimos em caravana com muitas centenas de peregrinos que vinham do Norte, da Peréia e da Decápole, para comer o cordeiro pascal em Jerusalém. Entramos pela porta do Peixe. Junto a ela, erguia-se a Torre Antônia, o edifício mais odiado por todos nós: era o quartel general da guarnição romana e o palácio do governador Pôncio Pilatos, quando visitava a cidade.
Pedro: Cuspam e vamos embora daqui! Minhas tripas se revolvem só de ver a águia de Roma!
João: Porcos invasores, eu os estrangularia de dois em dois para acabar mais rápido!
Jesus: Não estrangule ninguém agora, João e vamos procurar um lugar onde pernoitar. Com tanta gente, acabaremos dormindo na rua!
Pedro: Sigam-me companheiros! Tenho um amigo perto da Porta do Vale, que é como um irmão. Chama-se Marcos.
Pedro: Puxa, Marcos, até que enfim o encontrei! Amigo, amicíssimo, toca aqui!
Marcos: Pedro?!… Pedro pedrada, o maior pilantra de toda Galiléia! Mas, o que faz você aqui, condenado? Está fugindo da polícia de Herodes? Rá, rá, rá!
Pedro: Viemos celebrar a Páscoa em Jerusalém como fiéis cumpridores da lei de Moisés. Rá, rá, rá!
Marcos: Deixe de conversa, Pedro, aposto que algum contrabando você deve estar trazendo de Cafarnaum!
Pedro: Mas é claro, trouxe uma dúzia de amigos de contrabando. Camaradas: este é Marcos. Gosto mais dele do que da minha barca Clotilde, sem exagero! Marcos, todos estes são de confiança! Formamos um grupo. Estamos nos organizando para fazer alguma coisa. Olha, este moreno é Jesus, o mais bagunceiro de todos nós. Este das sardas é Simão…
Marcos: Bom, bom, deixe as apresentações e vamos entrar. Tenho meio barril de vinho suplicando para que uma dezena de galileus o beba!
Pedro: Beber agora? Está louco? Acabamos de chegar!
Mateus: E o que importa isso? Estamos cansados da viagem… Podemos… podemos brindar porque os ladrões da Samaria não nos quebraram o espinhaço!
João: Que coisa, esse Mateus só pensa em beber!
Pedro: Seria melhor se pudesse nos dizer onde podemos encontrar um lugar para passar a noite.
Marcos: Pois vamos à pousada de Siloé! Ali podem meter-se durante esses dias! É um lugar grande e tem um bom cheiro de romã, como gostam os galileus! Venham, vamos lá! Mas não se separem. Há muita gente. Qualquer um se perde nesse tumulto.
Nos dias da Páscoa, Jerusalém parecia uma caldeira enorme onde borbulhavam os 40.000 moradores da cidade, os 400.000 peregrinos que vinham de todas as partes do país e os imensos rebanhos de cordeiros que se amontoavam nos átrios do templo esperando ser sacrificados sobre a pedra do altar…
Tomé: Um momento, um momento! Antes de procurar po-po-pousada, temos de visitar o templo. Pri-pri-primeiro as coisas de Deus. Quem não vai ao templo quando chega a Jerusalém, se-se-seca a mão direita e a li-li-língua fica pregada.
João: Tomé fala por experiência própria…
Pedro: Sim, companheiros, vamos ao templo saudar os querubins.
João: E dar graças porque chegamos sãos e salvos!
Jesus: Isso. E que o Deus de Israel abençoe a todos nós que viemos esse ano para celebrar a Páscoa!
Milhares de peregrinos se atropelavam para passar sob os arcos do famoso templo de Salomão. No ar ressoavam os gritos, as rezas e os juramentos, misturados ao odor penetrante da gordura queimada dos sacrifícios. Junto aos muros, ficavam os cambistas de moedas e toda classe de camelôs gritando suas mercadorias… Aquilo parecia a torre de Babel…
Marcos: Esses vendedores malditos! Arrebentam os ouvidos da gente…! Ei, vocês, vamos ao átrio dos israelitas!… Certamente já estarão subindo a escadaria.
João: Quem são aqueles lá, Marcos?
Marcos: Os penitentes. Vêm cumprir as promessas que fizeram durante o ano… Olhem eles lá!
Um grupo de homens, vestidos de saco e jogando punhados de cinza na cabeça, subiam de joelhos as escadarias do átrio. Em seus pescoços e braços penduravam grossos rosários de amuletos. Seus joelhos tornaram-se calejados como os dos camelos, depois de tanto se esfregarem sobre as pedras…
Pedro: E para que fazem isso, Marcos?
Marcos: Jejuam sete dias antes da festa e agora se apresentam aos sacerdotes.
Jesus: E estes sacerdotes não explicaram a eles que Deus prefere o amor aos sacrifícios?
Marcos: É o que eu sempre digo também. Querem jejuar? Pois que lavem a cara e se penteiem bem para que ninguém fique sabendo o que estão fazendo, não é verdade Jesus?… Venham, vamos subir…
Subimos a escadaria. Lá, na esquina, em frente ao átrio dos sacerdotes, um coro de homens, com a cabeça coberta com o manto negro das orações, rezava sem parar os salmos da congregação dos piedosos. Eram os melhores fariseus de Jerusalém…
Pedro: Pois olhem esses aí… Parecem maritacas, repetindo a mesma coisa sem parar. Não sei como não travam a língua…
Marcos: Dizem que estão rezando a Deus, mas com o rabo do olho estão bisbilhotando tudo…
Jesus: Isto é o que procuram: que as pessoas prestem atenção neles. Se buscassem a Deus, rezariam em segredo, com a porta fechada.
Marcos: Ouçam, olhem só quem vem lá…!
Ao sair, quando íamos atravessar a Porta Formosa, ouviu-se soar as trombetas e a multidão se afastou para um lado… Em seguida se formou uma fila de mendigos junto ao arco da porta. Então apareceram quatro levitas, carregando uma liteira nos ombros. Detiveram-se junto aos mendigos e descansaram a liteira no chão… Abriram as cortinas e José Caifás, o sumo sacerdote daquele ano, desceu lentamente, vestido com uma túnica branca… Com seus olhos de coruja, olhava inquieto de um lado para o outro. Queria que o povo o visse dando esmola. Mas não queria correr nenhum risco. No ano passado, durante a festa, um fanático tinha lhe atirado um punhal…
Mateus: Olhem só a cara desse sem-vergonha!
Tomé: Não diga uma coisa dessas, Ma-ma-mateus. É o sumo sacerdote de-de-de Deus.
Mateus: Que sumo sacerdote que nada! Esse tipo só quer que falem dele…! Olhe o que está fazendo…
Caifás se aproximou dos mendigos e lhes distribuiu denários como quem reparte doces para as crianças… Com uma mão dava a esmola e com a outra mostrava o cordão de ouro, símbolo de seu cargo, que os mendigos beijavam com gratidão…
Jesus: Se fosse sumo sacerdote de Deus, não deixaria que sua mão esquerda soubesse o que faz a direita. Esse não é mais que um hipócrita.
Pedro: Natanael, Jesus, André… vamos embora! Já está ficando tarde e ainda não temos onde dormir!
Marcos: Não se preocupem tanto com a pousada. Se não tiver lugar em Siloé, vamos para Betânia. Lá existe o acampamento dos galileus. Mas agora, vamos beber o meio barril que ofereci, ou se não, os denuncio à polícia romana!
Marcos: Um brinde por esses treze compatriotas que viajaram desde a Galiléia para visitar a casa deste humilde mercador de azeitonas!
Pedro: Espere aí, Marcos, que não viemos aqui para ver você, seu pilantra. Viemos por Jerusalém… Um brinde pela cidade santa de Jerusalém…
Marcos: Pedro, não se iluda. Desta cidade não sobrou nem o “s” de santa. “O templo de Jerusalém, o templo de Jerusalém…!” Sabem o que dizem os que vivem aqui? Que no templo de Jerusalém está guardado o maior tesouro de fé do mundo… E sabem por quê? Porque todos os que vêm visitá-lo, perdem a fé e a deixam ali! E se fosse só o templo…! Olhem, estão vendo aquelas luzes?… são os palácios do bairro alto… Olhem depois os barracos de Ofel e as casinhas de barro junto à Porta do Lixo… Um formigueiro de camponeses que veio buscar trabalho na capital… E o que encontraram foi a miséria e a febre negra. Esta cidade está podre, é o que eu digo, pois eu a conheço.
Jesus: Sim, Marcos. Está construída sobre areia. Acabará se afundando.
Tomé: Dizem que os alicerces de Jerusalém são de rocha pu-pu-pura.
Jesus: A justiça é a única rocha firme, Tomé. E esta cidade foi erguida sobre a ambição e as desigualdades…
Marcos: Bom, rapazes, agora sim temos de ir caminhando para Betânia. Vamos!
As ruas estavam abarrotadas de gente e animais. Já se sentia o cheiro dos ázimos nos fornos de pão. Sentíamos também o cheiro dos perfumes das célebres prostitutas de Jerusalém que, sem esperar a noite, se exibiam muito pintadas junto ao muro dos asmoneus… Em todas as esquinas do bairro baixo se apostava nos dados e se jogava o reizinho. As tabernas estavam repletas de bêbados e as crianças saíam para roubar as sobras das mesas… Saímos pela muralha do Oriente. Atravessamos o riacho do Cedron, que na primavera escoava muita água… Subimos o Monte das Oliveiras e chegamos a Betânia, onde os galileus sempre encontravam guarida para passar os dias da Páscoa… Atrás ficava Jerusalém, cheia de luzes e ruídos. A fome, a injustiça e a mentira guardavam, sonolentas e satisfeitas, as portas muradas da cidade do rei Davi.
*Comentários*
A viagem a Jerusalém, por ocasião das grandes peregrinações de Páscoa, era feita a pé. Cafarnaum está separada de Jerusalém por uns 200 quilômetros, com o que seguramente Jesus e seus companheiros de caravana fariam o trajeto em quatro ou cinco dias de caminhada. Quando já se aproximavam da cidade santa os peregrinos tinham o costume de cantar os chamados “salmos das subidas” (Salmos 120 a 134). Entre os mais populares estava o que ainda hoje cantamos: “que alegria quando me disseram: Vamos à casa do Senhor… Nossos pés já estão pisando seus umbrais, Jerusalém…” (Salmo 121).
Jerusalém (seu nome significa “cidade de paz”: Paz = “shalom”) é uma das cidades mais antigas do mundo. Está construída sobre uma meseta rochosa, flanqueada por dois profundos vales: o do Cedron e da Geena. Mil anos antes de Jesus nascer, Jerusalém foi conquistada dos jebuseus pelo rei Davi e se tornou a capital do reino. Ao longo da história, Jerusalém foi destruída total ou parcialmente em mais de 20 ocasiões. Uma das destruições mais terríveis aconteceu quinhentos e oitenta e seis anos antes de Jesus, quando os babilônios a arrasaram até os alicerces. Outra, setenta anos depois da morte de Jesus. Neste caso, pelas mãos das tropas romanas para sufocar a insurreição dos zelotas. Jerusalém era – e ainda é hoje – uma cidade rodeada de muralhas, nas quais se abriam uma dúzia de portas. As numerosas guerras e destruições suportadas pela cidade fazem com que na atual Jerusalém se superponham zonas e construções mais ou menos antigas com outras mais recentes. No entanto, são inumeráveis as ruínas autênticas do tempo de Jesus. Jerusalém foi desde o tempo dos profetas, até os escritos do Novo Testamento, o símbolo da cidade messiânica, da cidade em que vive Deus, da cidade onde ao final dos tempos se congregarão todos os povos para a festa do Messias (Is 60, 1-22; 1-12; Mq 4, 1-5; Ap 21, 1-27). A Jerusalém é dado também o nome de Sion, por estar construída sobre um pequeno monte que com esse nome.
Jerusalém era capital do país e o centro da vida política e religiosa de Israel. Calcula-se que nos tempos de Jesus viviam dentro das muralhas umas 20.000 pessoas e fora delas, na cidade que ia se estendendo pelos arredores, entre 5.000 e 10.000 habitantes. (A população total da Palestina era de 500.000 ou 600.000 habitantes). Nas festas da Páscoa chegavam a Jerusalém uns 125.000 peregrinos, com o que a cidade ficava abarrotada de gente. As multidões de visitantes – nacionais e estrangeiros – multiplicavam os negócios e seus lucros, favoreciam todo tipo de revoltas e tumultos e convertiam a cidade em uma autêntica maré humana, na qual a gente do campo ou dos povoados pequenos devia ficar surpresa e confusa.
Dentro das muralhas, entre as grandes construções da cidade, destacava-se o templo, edifício descomunal e luxuoso que equivalia por sua superfície à quinta parte da extensão de toda a cidade murada. Isto pode dar uma idéia de tão impressionante construção, centro religioso do país e sede de uma potência econômica de primeira ordem. Encostada à parte norte do templo, estava a Torre Antônia, fortificação murada, que nos tempos da dominação de Roma servia como quartel de uma guarnição romana. Da Torre Antônia, os soldados vigiavam continuamente a explanada do templo, que se comunicava com a torre através de duas escadas. Esta vigilância aumentava nos tempos da Páscoa, quando a movimentação de pessoas no templo era maior que de costume.
Marcos é mencionado pela primeira vez no livro dos Atos dos Apóstolos (12, 25), acompanhando Paulo em sua viagem de Jerusalém a Antioquia. Era primo de Barnabé, outro companheiro de Paulo em suas viagens. Em diferentes ocasiões Marcos – seu nome inteiro era João Marcos – aparece junto a Paulo e também junto a Pedro, que lhe tinha tanto carinho, que o chama em uma carta de “seu filho” (1Pd 2, 13). Sabemos, por vários dados do Novo Testamento, que Marcos era de Jerusalém, onde vivia sua mãe, que Pedro foi amigo dele e de sua família e que os primeiros cristãos se reuniam habitualmente em sua casa (At 12, 12). Desde o século II foi considerado como o autor do segundo evangelho. Baseando-se em tudo isso, Marcos aparece no relato como um cidadão de Jerusalém e amigo de Pedro. É um homem expansivo, alegre e prático.
Em torno do templo de Jerusalém abundavam sempre e, especialmente nos dias de Páscoa, homens e mulheres que cumpriam promessas religiosas, mendigos que pediam esmola, multidões que oravam e faziam penitências. O que Jesus ensina sobre a esmola, o jejum ou a oração neste episódio pode ser resumido em algo bem simples: uma crítica ao exibicionismo, ao palavrório desmedido, ao desejo de chamar a atenção que tinham muitos dos que acreditavam serem religiosos. Era costume, por exemplo, que a hora da oração da tarde fosse anunciada com o soar de trombetas. Alguns fariseus preparavam tudo para que, no instante em que se ouvisse este chamado, se encontrassem – como que por acaso – no meio da rua e assim tivessem que rezar diante de todo mundo e as pessoas os tomas-sem por muito piedosos. Criticando hipocrisias deste tipo, Jesus fala de rezar em segredo, com a por-ta fechada, de dissimular quando estiver jejuando e de dar esmola sem apregoar aos quatro ventos.
Jerusalém era uma cidade formosa, grande, com bonitos e luxuosos edifícios, famosa em todo o mundo antigo. Mas no meio de todo seu luxo, junto às casas dos poderosos comerciantes e das famílias ricas, aglomeravam-se os casebres dos pobres artesãos que ganhavam apenas para seu sustento, os bairros dos assalariados, que praticavam ofícios mais ou menos mal vistos e subsistiam com dificuldade. Sem falar dos mendigos, que enchiam as ruas e os arredores da cidade. No episódio, Jesus compara esta Jerusalém de ricos muito ricos e pobres muito pobres com uma cidade edificada sobre a areia (Mt 7, 24, 27). Trata-se de uma parábola de advertência: para Deus é intolerável essa desigualdade. Se não há justiça não há alicerces firmes, e uma sociedade assim corrompida terminará vindo abaixo. Jesus denuncia os grandes responsáveis por esta situação: os chefes, os sacerdotes, os homens religiosos, que alienam o povo com uma falsa idéia de Deus para assim manterem sua situação privilegiada.
(Mateus 6, 1-18)