56- O GEMIDO DO VENTO

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Tiago: Está na hora de dormir, rapaziada, pois amanhã temos de madrugar!

Pedro: Ai, meus pés! Essas três jornadas que fizemos hoje eu não desejo nem para a minha sogra!

Maria: Pois então fiquem um par de dias mais. Há lugar na taberna. Ainda mais agora que as pessoas começaram a regressar aos seus povoados.

Pedro: Não dá, Maria, temos de voltar para a Galiléia. E sabe por quê? Porque nosso dinheiro já se acabou. Não temos mais nenhum tostão.

Maria: Bah, se é por isso, não se preocupem. Meu irmão Lázaro tem muito carinho por vocês. Se não podem pagar agora, a gente cobra quando voltarem outra vez. Porque vocês voltarão, não é mesmo?

Estávamos guardando a meia dúzia de bugigangas que compramos durante a festa da Páscoa em Jerusalém e despedindo-nos de Marta e Maria. Já era noite quando Lázaro, o taberneiro, chegou correndo…

Lázaro: Pshh! Algum de vocês está levando contrabando para o norte?

Pedro: Contrabando? Está louco? As alfândegas ficam muito vigiadas nestas datas. Por que pergunta?

Lázaro: Porque vocês têm visita. Um peixe grande. Um dos setenta magistrados do Sinédrio… Está aí fora, com um par de guarda-costas, perguntando por vocês. Eu pensei que vocês levavam contrabando.

Maria: Se estão levando, eles disfarçam muito bem… não é à toa que são galileus!

Lázaro: Vamos, rapazes, alguém tem de sair e dar as caras…!

Tiago: Bom, eu vou, vamos ver o que ele quer. Você vem comigo, João?

Meu irmão Tiago e eu saímos para ver quem nos procurava. À porta da Palmeira Bonita estava nos esperando um homem alto, com longa barba crespa e envolto em um manto de púrpura muito elegante. Acompanhavam-no dois etíopes, com a cabeça raspada e adaga na cintura…

Tiago: Vejamos, em que podemos servi-lo, senhor?

Nicodemos: Quero falar com o chefe de vocês.

Tiago: Com o chefe? Aqui ninguém é chefe de ninguém. Somos um grupo de amigos.

Nicodemos: Estou me referindo a este tal Jesus, de Nazaré. Aquele que faz as “coisas”.

Tiago: O que faz as “coisas”? Explique-se melhor.

Nicodemos: Não vim falar com vocês, mas com ele. Vão e chamem-no!

Tiago e eu entramos novamente na taberna…

Jesus: O que será que ele quer falar comigo…? O que estará procurando esse sujeito?

Tiago: Isso não me cheira nada bem, Jesus. É um fariseu importante, sabe? E eu acho muito esquisito que ele tenha vindo até aqui e a essas horas… Alguma coisa ele estará aprontando…

Jesus: Bem, vamos ver do que se trata…

Maria: Não demore muito, Jesus. A história dos três camelos ainda está pela metade…!

Jesus saiu para o pátio onde o esperava o misterioso visitante…

Nicodemos: Puxa vida, até que enfim o encontrei, nazareno! Quero falar alguns minutos com você, a sós…

Jesus: Sim, está bem. Mas se você está procurando contrabando, creio que perdeu seu tempo. A única coisa que levo de Jerusalém é um lenço para minha mãe, que os daqui são muito baratos.

Nicodemos: Não, não se trata disso, meu rapaz. Vou explicar-lhe já, já. Vocês dois, esperem ali.

Os dois etíopes se distanciaram como a um tiro de pedra…

Nicodemos: Deve haver por aqui algum lugar para conversar, não é mesmo…?

Jesus: Debaixo daquela palmeira estaremos bem. Vamos!

Do fogão, vimos Jesus afastar-se até a um canto do pátio. As nuvens corriam rápidas no céu, empurradas por um vento da noite que gemia entre as árvores…

Jesus: Você dizia que…

Nicodemos: Eu me chamo Nicodemos, Jesus. Sou magistrado no Tribunal Supremo de Justiça. Meu pai foi o ilustre Jeconias, tesoureiro-chefe do templo.

Jesus: E o que quer de mim um homem tão importante?

Nicodemos: Compreendo que você estranhe minha visita. Embora já tenha imaginado por quê vim.

Jesus: Devo ter pouca imaginação porque, francamente, não tenho a mínima idéia do que você quer de mim.

Nicodemos: Não quero nada de você. Na realidade, vim ajudá-lo.

Jesus: Ajudar-me?

Nicodemos: Digamos que será uma ajuda mútua. Um benefício mútuo, compreende?

Jesus: Como você não fala mais claro, não estou entendendo nada.

Nicodemos: Jesus, sei muitas coisas sobre você… Olhe, o que você fez na piscina de Betesda correu por toda a cidade… Sim, não faça essa cara! Aquela história do paralítico sair andando… assim, numa boa… Sei também que você fez coisas parecidas lá pela Galiléia: um louco, um leproso… até dizem que ressuscitou uma menina morta em pleno velório. Também ao Sinédrio chegaram esses rumores…

Jesus: Uf, como correm depressa as notícias neste país, heim?

Nicodemos: Como você vê, segui bem de perto sua pista. E lhe dou meus parabéns, Jesus.

Jesus: Continuo sem entender de onde você veio e onde quer chegar…

Nicodemos: Vamos, vamos, não disfarce. Reconheço que para ser truques, estão muito bem bolados… Não vai me dizer que são milagres… você não tem cara de santo… Está bem, está bem. Compreendo que desconfie de mim. Mas vamos ao que interessa. Afinal de contas, para mim dá no mesmo se são truques seus, ou milagres de Deus… ou se é o rabo do diabo que está metido nisso. Para o caso, tanto faz. O povo não distingue uma coisa da outra. Essa gente sofre muito e precisa iludir-se com alguma coisa. E nisso você é mestre, na arte de entusiasmar o povo… Enfim, quero lhe propor um negócio, Jesus de Nazaré. Podemos fazer uma sociedade e os lucros seriam meio a meio… Ou então, se preferir, posso dar-lhe uma quantia fixa, por exemplo… 50 denários. Acha pouco?… Sim, não é muito mas… Digamos 75… Mais ainda?… Parece-me exagerado tanto dinheiro para um camponês, porque depois ficam bebendo nas tabernas mas, enfim, porque acho você muito simpático, poderia subir para até 100 denários. Trato feito. Agora vou explicar o que quero que faça… Mas, do que você está rindo?

Jesus: De nada. É que estou achando isso muito engraçado…

Nicodemos: Sim, já sei, vocês galileus têm os caninos retorcidos como o javali. Está bem. Acho que 100 denários é um bom salário para um mago, mas… até aí tudo bem, ponha o seu preço. Quanto você quer?… Acredite, rapaz, seu negócio me interessa mais que qualquer outro…

Jesus: Sim, sim, estou vendo, mas… não tenho o menor interesse nesse assunto, Nicodemos.

Nicodemos: Como?… Por que? Estou dizendo que posso lhe dar muito dinheiro, e não estou mentindo.

Jesus: Não, não é por isso.

Nicodemos: Então, por que?

Jesus: Bem, é que… é que você é muito velho.

Nicodemos: Por isso mesmo, rapaz. Dizem que até o diabo sabe mais por velho do que por diabo. Com minha experiência e sua habilidade podemos ir muito longe.

Jesus: Não, Nicodemos. Digo-lhe que preciso de gente jovem.

Nicodemos: Bom, eu tenho uns quantos anos nas costas, essa é a verdade, mas… de saúde não estou tão mal. Ainda me defendo…

Jesus: Nicodemos: preciso de meninos.

Nicodemos: Meninos? Ah, vamos lá, Jesus, deixe as crianças na escola e vamos falar de coisas sérias.

Jesus: Eu estou falando sério, Nicodemos. Eu preciso de crianças. Se você quer se meter nesse assunto, teria que… nascer outra vez. Isso, voltar a ser criança…

Nicodemos: Já haviam me falado que você é muito cômico, nazareno. Bom, como você sabe tantos truques, talvez você possa fazer-me entrar outra vez no ventre de minha mãe para que ela volte a me parir… Enfim, voltemos ao nosso negócio. Como ia lhe dizendo, trata-se de…

Jesus: Você se tornou velho juntando dinheiro, Nicodemos. E aí surgiu um calo no seu coração e outro nos seus ouvidos. Por isso não compreende. Por isso não ouve o vento.

Nicodemos: Olhe, sei que estou velho, mas não surdo. O vento eu ouço, sim. Mas de você não entendo nenhuma palavra. O que é que você está querendo me dizer?… Que o dinheiro não lhe interessa?… É isso?… Ah, vocês jovens não têm jeito mesmo… Todos dizem a mesma coisa. Claro, quando se tem o papai por trás: “dinheiro? Para que? O dinheiro é o de menos”… Depois, quando a fruta amadurece, dão-se conta de que com o dinheiro se consegue quase tudo nesta vida… Mas, enfim, se você é tão pouco ambicioso, guardo meus denários. Pior pra você.

Jesus: Não, não, não os guarde, não disse isso.

Nicodemos: Ah, seu safado, já sabia que acabaria mordendo a isca. Estava certo de que esse negócio lhe interessaria. Veja você: poderíamos começar com uma apresentação no teatro… ou no hipódromo, que cabe mais gente… ou também… Mas o que acontece? Está distraído ou o quê?

Jesus: Nicodemos, está ouvindo o vento?… Ele traz a queixa de todos os que sofrem, de todos os que morrem chamando por Deus para que haja justiça na terra. Como pode guardar seu dinheiro e fazer-se surdo aos lamentos que traz o vento?… Escute… É como o grito de uma mulher que dá à luz… Está nascendo um homem novo, um homem que não vive para o dinheiro mas para os demais, que prefere dar a receber.

Nicodemos: Agora sim que não entendo patavina.

Jesus: Claro, para entender você teria de escolher.

Nicodemos: Escolher? Escolher o que?

Jesus: Não se pode servir a dois senhores de uma só vez. Tem que escolhe entre Deus e o dinheiro. Se escolher Deus, você entenderá os lamentos do vento e o vento o levará até onde você nem sequer imagina. Se escolher o dinheiro você ficará sozinho.

Nicodemos: De verdade, não sei de quê você está falando.

Jesus: Você deveria saber. Você que tem tantos títulos, não entende o que está acontecendo? O povo está reclamando seu direito. Queremos ser livres como o vento. Queremos ser felizes. Queremos viver.

Nicodemos: Jesus de Nazaré, já sei o que você é: um sonhador! Mas esse mundo com que você sonha, jamais chegará.

Jesus: Já chegou, Nicodemos. Deus quer tanto este mundo que já pôs as mãos à obra. O Reino de Deus já começou!

Nicodemos: Desce das nuvens, rapaz, seja realista, meu jovem… Quem lhe diz sou eu, que já tenho os dentes amarelos. Pense em primeiro lugar em você, e em segundo também. Depois de você, o dilúvio. As coisas são como são. E continuarão sendo assim.

Jesus: Não, Nicodemos. As coisas podem ser diferentes. E já estão sendo. Lá na Galiléia vimos gente muito pobre repartindo o pouco que tinham com os demais. Você não queria ver milagres? Pois desce você de sua cátedra de mestre e olhe para além do nosso bairro. Eu lhe asseguro que você aprenderá a fazer o maior milagre de todos, o compartilhar com quem não tem.

Nicodemos: Sim, estou percebendo, você está pirado. Não tenho mais dúvida. Mas reconheço que, ouvindo você falar…

Jesus: Olhe pra cima, Nicodemos… não a vê?

A lua cheia do mês de Nisan, redonda como uma moeda, espargia sua luz branquíssima sobre o pátio da taberna…

Jesus: Veja-a! Brilha como o seu dinheiro. Mas sabe o que fez Moisés, lá no deserto? Pegou o bronze das moedas e com ele fabricou uma serpente e a ergueu no meio do acampamento. E os que a olhavam ficavam curados da picada das cobras… A serpente do dinheiro picou você, Nicodemos. Você tem o veneno dentro… Se quiser curar-se…

Nicodemos ficou em silêncio, olhando aquela lua de bronze… O punhado de moedas que levava na bolsa lhe pesava agora como um fardo. Sentia-se mais velho e mais cansado que nunca, como se sua vida não tivesse sido mais que um pouco de água que se lhe escorria pelas mãos…

Nicodemos: Você acredita que para um homem velho como eu… ainda… ainda há esperança?

Jesus: Sim, sempre há esperança. A água limpa e o espírito renova… Se você quiser…

E o vento continuou soprando entre as árvores. Vinha de muito longe e empurrava as palavras de Jesus muito longe também. E quando Nicodemos deixou a taberna e se pôs a caminho para Jerusalém, o vento o acompanhou em seu regresso.

*Comentários*

Nicodemos é citado unicamente pelo evangelho de João. É uma das poucas pessoas pertencentes à instituição religiosa que estabeleceram uma relação amistosa com Jesus. Era do grupo fariseu do Sinédrio. O Sinédrio era o órgão supremo do governo judaico. Funcionava também como Corte de Justiça. Era composto por setenta e um membros, que deviam ter um profundo conhecimento das Escrituras para dar suas sentenças. Concretamente, os sinedritas do partido fariseu – como este Nicodemos – haviam ocupado os postos administrativos do organismo e tinham dentro dele uma grande influência. Os sinedritas eram pessoas sumamente privilegiadas dentro da sociedade: donos do saber e de todo o poder que lhes dava o fato de interpretar as leis. Ademais, eram geralmente, muito ricos. Quando no evangelho de João se fala “dos chefes dos judeus”, se faz referência a homens que ocupavam cargos político-religiosos deste tipo.

Um homem situado em um posto de poder como Nicodemos, teria intenções não muito claras ao aproximar-se de Jesus. Neste episódio aparece interessado em negócios “rentáveis”. Quer usar o religioso em seu próprio benefício. Entre os sinedritas não eram usuais atitudes deste tipo. No tempo de Jesus o Sinédrio era um órgão de poder político, social e econômico muito corrompido. A um homem que vem de um ambiente deste, Jesus proporá uma alternativa básica de verdadeira atitude religiosa: ou Deus ou o dinheiro. Escolher Deus é converter-se ao Reino. Escolher o dinheiro é deixar-se fora do projeto de Deus.

No diálogo entre Jesus e este influente fariseu, recolhido pelo quarto evangelho, João emprega toda uma série de temas teológicos: A água e o Espírito, o que vem de cima e o que é da terra, a luz e as trevas… Também emprega símbolos: a serpente de Moisés, o vento… Isto nos indica que não relata exclusivamente uma conversa real, pois um diálogo assim torna-se inverossímil. Trata-se, muito mais, de uma explicação teológica. A este homem dominado pela Lei, Jesus fala de liberdade (o vento que sopra onde quer) e se coloca a possibilidade de nascer de novo, de começar outra vez a vida, de converter-se.

A idéia do “homem novo” que se expõe neste programa é básica para se entender este diálogo de Jesus com Nicodemos. Em última instância, toda conversão é isso: transformação para a vida, para o novo, para o futuro. O homem novo que Jesus propõe a Nicodemos neste relato, é o que antepõe a atitude de compartilhar ao do benefício próprio. É o homem comunitário frente ao homem individualista. Tudo isso é difícil, exige juventude de coração. O tema do homem novo é freqüente nas cartas de Paulo (Col 3,9-11; Ef 8,2-10 e 4,20-24).

As conseqüências do batismo cristão foram expressas tradicionalmente com a fórmula que Jesus empregou com Nicodemos: Renascer da água e do Espírito. A água, que é símbolo da vida e o espírito (no hebraico espírito e vento se diz com a mesma palavra “ruah”), símbolo da liberdade, marcam o cristão. Trata-se de ser esse homem novo que escolhe sempre a vida e defenda a liberdade diante de toda servidão. O batismo possibilita a esse homem novo a disponibilidade para escolher o Deus da vida em seus compromissos e em todos os seus atos.

(João, 3,1-21)