88- À SAÍDA DE JERICÓ

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No meio do deserto da Judéia, no vale do rio Jordão, como um tapete verde e redondo, está Jericó, a cidade das palmeiras e das rosas, a mais antiga das cidades de nosso país…

Bartimeu: Obrigado, conterrânea! Deus lhe pague com alegria este denário…!

Uma mulher: E diga isso bem alto! Pois alegria faz falta para todo mundo! Agora, volte para casa, Bartimeu, que com isso já dá para vocês comer hoje…

Bartimeu: Não, dona, prefiro ficar aqui. Minha casa está vazia e muito sozinha. Por aqui passa muita gente. Eu não vejo seus rostos, mas… mas sinto o cheiro de suas tristezas e alegrias… e isso é viver. Deixe-me, deixe-me, prefiro ficar aqui…

À saída de Jericó, à beira do largo e empoeirado caminho que leva a Jerusalém, há muitos anos sentava-se a pedir esmolas, o cego Bartimeu. Tinha a barba salpicada de pelos brancos, mas ainda não era velho. Suas mãos, que nunca ficavam tranqüilas, seguravam um gordurento bastão…

Mulher: Bem, conterrâneo, fique com Deus!

Bartimeu: E com seus doces anjos, senhora. Que Ele lhe pague!

Bartimeu acariciou cuidadosamente o denário e o guardou no bolso. Depois, apertou com força seus escuros olhos sem visão e começou a revolver seu baú de lembranças…

Rute: Uff! Aqui está o couro, Bartimeu… Pesa mais que as tripas de uma baleia…

Bartimeu: Mas, o que você entende de baleia, sua sem-vergonha, se nem o mar você já viu? Rá, rá…! Mas eu já vi uma: você, que está ficando mais gorda que a de Jonas! Rá, rá, rá! Já nem consigo carregar você nos braços!

Rute: Ui, pare de me fazer cócegas! Rá, rá! Vamos, pare de brincadeira e vai cortar o couro. Você tem muitas encomendas pendentes…

Bartimeu: Está bem, está bem… Ajude-me aqui, mulher. Traga a navalha…

Na larga avenida de Jericó, Bartimeu tinha sua pequena oficina de curtidor. Vivia com ele Rute, uma mulher alegre e decidida, a quem amava até em sonhos. Os meses e os anos passavam. E o trabalho, o amor e os amigos enchiam de felicidade os dias de Bartimeu…

Bartimeu: Rute, mulher, passe-me a agulha…

Rute: A agulha? Não está comigo…

Bartimeu: E nem comigo…

Rute: Vamos ver, Bartimeu, vamos ver… Você é tão descuidado… Onde estará, diabos…?… Mas, está bem em cima da mezinha, homem de Deus! Se fosse uma cobra teria picado você!

Bartimeu: Onde você disse que está?

Rute: Ali, bem na sua frente, tonto…

Bartimeu estendeu seu braço até à mezinha e, tateando, encontrou a longa e grossa agulha com que costurava as peças de couro…

Bartimeu: Já… já vou pegar…

Rute: Não… você não a viu, Bartimeu…?

Bartimeu: Não, não a vi, mulher, não a vi…

A doença correu seu caminho sem deter-se por um momento sequer. E, em poucos meses, os olhos negros de Bartimeu se fecharam à luz para sempre. Não pôde mais usar a agulha nem cortar com a navalha. Não pôde continuar trabalhando em sua oficina. Tampouco pôde escapar da tristeza e da angustia que se abateu sobre sua casa, com duas visitantes inoportunas, sempre ao seu lado, de dia sentadas à mesa, de noite deitadas entre ele e sua mulher…

Bartimeu: Rute… ei… Rute… Onde você está? Rute, mulher, onde você se meteu? Ei, Rute, Rute!!

Uma vizinha: Posso entrar, meu filho?

Bartimeu: Quem é você…?

Vizinha: Sou Lídia, a comadre de Rute…

Bartimeu: Onde ela está?… Eu acordei e… e não a encontrei. Onde está ela?

Vizinha: Já está longe, meu filho.

Bartimeu: Como já está longe?

Vizinha: Compreenda, Bartimeu… Você, desse jeito… sem enxergar… sem poder trabalhar… A moça ainda é jovem… Tem direito de recomeçar sua vida.

Bartimeu: Mas, o que você está dizendo?!

Vizinha: O que ela me encarregou de dizer-lhe… Que foi para Betânia, para a casa dos pais…

Bartimeu: Com outro homem…? Com outro homem, não é mesmo?! Com alguém que não seja cego como eu!… Diga. Não foi isso? Diga!

Vizinha: Veja bem, meu rapaz, como vocês nem mesmo tiveram filhos…

Bartimeu: Mas nós quisemos ter!… Ou será que isso não importa?

Vizinha: Bartimeu, compreenda… Com você desse jeito… Isso não era vida para ela…

Pouco tempo depois, Bartimeu teve que fechar sua oficina de curtidor. A cegueira o havia deixado sem alegria de trabalhar e sem o amor de sua mulher. Pouco a pouco, foi ficando também sem a companhia de seus amigos, que nunca mais se aproximaram dele como antes, a não ser para demonstrar-lhe uma fria compaixão…

Bartimeu: Isso não era vida para ela… Não era vida… E para mim? As poucas economias que tinha já estão se acabando. O que vou fazer sem meus olhos?… Pedir esmola! Mas, eu tenho braços fortes para trabalhar e sou jovem e… Tonto! Os cegos já não servem para nada!… É preciso que se lhes dê a mão… Se se esquecem do bastão, tornam-se como crianças… Não servem para nada… Maldito seja o dia em que nasci! Foi para isso que saí do ventre de minha mãe? Deus! Por que me fizeste ver a luz para depois me cegar?

Uns dias depois, Bartimeu, com passo vacilante, guiando-se com um bastão, foi sentar-se à beira do caminho por onde passavam os moradores de Jericó e por onde entravam os mercadores de outras cidades. E começou a pedir esmola. Depois, quando escurecia, Bartimeu voltava para sua casa fria e solitária. E, sem vontade de comer, sem vontade de falar com ninguém, deitava-se na esteira apertando os olhos mortos com os punhos cerrados…

Bartimeu: De noite… sempre de noite! Sempre será de noite!… Como era mesmo o rosto de Rute… como era? Estou me esquecendo de seus olhos… de sua boca… Já não voltarei a vê-la nunca mais… Para que quero viver então? Para nada! Ninguém precisa de mim e eu… eu não preciso de ninguém… Só quero me esquecer desse pesadelo…

Bartimeu se levantou rastejando de sua esteira e começou a tatear por todos os cantos de sua oficina vazia…

Bartimeu: No sicômoro do quintal… sim… Uma corda… Será difícil, mas será só um instante… Mais difícil é viver assim, um dia depois do outro sem esperar nada… esperando só morrer… A morte não precisará vir me buscar… Eu é que irei procurar por ela… Sim, sim… será só um instante… e tudo estará acabado! Mas, maldição, onde está a corda, onde?… Todos dirão: “ficou louco”… Que digam o que quiserem… Não, não fiquei louco… Fiquei cego, o que é pior… Estava por aqui… a corda… a corda… Onde está a corda, Deus?!! Onde?!… Foi você que a escondeu!… Ou será que foi o diabo?… Malditos seja os dois!… Nem sequer posso me enforcar?

Bartimeu tateava, de quatro, por toda a oficina procurando a corda grossa com que antes amarrava os pacotes de couro… Revolvia tudo, procurava por todos os cantos, mas não a encontrava em nenhuma parte…

Bartimeu: Maldição! Onde estará, diacho…? Onde?! Eu quero morrer!… Eu quero morrer!… Eu quero… Eu quero viver… eu… quero viver… eu quero… viver.

Bartimeu: Por que não me matei naquele dia?… Não, não foi o diabo… Agora estou certo de que foi Deus quem escondeu a corda de mim… e me meteu nos ossos a vontade de viver… Não sei como você chegou até aqui, Bartimeu, raposa velha, depois de tantos anos andando por aí aos tropeções… Mas, aqui está você, mais firme que o duro sicômoro do quintal, com um bom nariz para cheirar as rosas mais bonitas do mundo e as orelhas atentas no meio deste caminho… Isso também é viver, eu acho… E também vale a pena, caramba…!

Menino: Tchau, Bartimeu, outro dia a gente conversa mais!

Bartimeu: Ei, espere, Pituxo… Por que está com tanta pressa?

Menino: É que o profeta da Galiléia já está indo embora de Jericó…!

Bartimeu: Quem? Jesus de Nazaré?

Menino: Sim, e está vindo para cá com muita gente! Vou avisar o Gaspar para que ele venha vê-lo!

Quando estávamos indo embora de Jericó, muitos homens e mulheres da cidade saíram para despedir-se de nós…

Uma mulher: Viva o profeta da Galiléia!

Um homem: E fora os romanos e os que abusam do povo!

Bartimeu: E fora vocês que não me deixam passar, caramba, eu ainda não vi o profeta e quero vê-lo!

Uma velha: E então, Jesus, quando você voltará por Jericó?

Homem: Vamos esperá-lo para a próxima Páscoa!

Bartimeu: Eu quero ver o profeta!

Homem: Pare de gritar, cego duma figa!

Bartimeu: Eu quero vê-lo!

Mulher: Cale essa boca, Bartimeu!

Bartimeu: Eu quero vê-lo, eu quero vê-lo!

Homem: Como é que quer vê-lo, se você é cego, diacho?

Bartimeu: Então, que ele me veja… Jesus, profeta! Jesus, profeta!!

Jesus: Quem está gritando, vovó?

Velha: É um cego agitador que sempre está metido em tudo…

Jesus: Deixem-no passar… ei, vocês, digam para ele vir…

Homem: Aprontando mais uma, heim Bartimeu… Venha, passe por aqui, que o profeta perguntou por você…

O cego Bartimeu, radiante de alegria, jogou para cima seu manto de mendigo, jogou o bastão e, de um pulo só, se pôs de pé e abriu caminho entre todos até chegar a Jesus…

Bartimeu: Jesus, profeta!!!

Jesus: Estou aqui. Como você se chama?

Bartimeu: Bartimeu. Sou cego…

Jesus: E por que estava gritando?… Quer alguma coisa?

Bartimeu: Sim. Você me deixa tocar seu rosto…?

Jesus se deteve e fechou os olhos por um momento… Bartimeu levantou suas mãos até ele e tateou a fronte larga, as bochechas, o nariz, o perfil dos lábios, a barba bem cheia…

Bartimeu: Obrigado, profeta. Já haviam me falado de você, alguns diziam que você era feio, outros que era bem moço, outros que assim, outros que assado. Agora eu já faço um idéia…

Jesus: Quanto tempo faz que você é cego?

Bartimeu: Ui, já choveu muito desde então. Já passa dos dez anos…

Jesus: Então, dez anos esperando…

Bartimeu: Bom, esperando e desesperando. Certa vez quis me enforcar. Mas Deus escondeu a corda…

Jesus: E agora?

Bartimeu: Agora já estou conformado. Eu acho que a vida é bonita até com os olhos fechados. Você não acha?… Bem, então…

Jesus: Espere, Bartimeu, não vá ainda… você… você me deixa tocar em seu rosto?

Bartimeu: Você em mim? Mas você não é cego…

Jesus se aproximou e passou a mão pelos olhos daquele homem que não deixava de sorrir…

Jesus: A esperança foi seu bastão por todos esses anos… Você soube ver o mais importante, Bartimeu… Viu com os olhos do coração.

Bartimeu: E… agora estou vendo você… Não… não poder ser…! Eu estou vendo seu rosto, profeta! Eu o conhecia só de ouvir falar, mas agora meus olhos estão vendo você!

Os moradores de Jericó se apertaram contra nós e começaram a gritar, cheios de entusiasmo. E diziam que Jesus era o Messias esperado por nosso povo há tantos anos… Bartimeu chorava de alegria e nos acompanhou por um trecho quando regressamos para a Galiléia… À saída de Jericó, sobre o pó do caminho, ficou jogado o sujo manto de mendigo e o velho bastão…

*Comentários*

No meio do deserto da Judéia, Jericó aparece como um oásis verde e fértil. Era também chamada de “a cidade das palmeiras”. Eram conhecidas e famosas as rosas de Jericó (Eclesiastes 24, 14), embora não se tenha segurança de que estas rosas sejam as flores que hoje conhecemos como tais. Alguns acreditam que se trate das adelfas, flores típicas dos climas quentes. Em todo caso, Jerico é um autêntico jardim. A fertilidade desta terra se deve à chamada Fonte de Eliseu. A tradição dizia que foi Eliseu, o profeta discípulo do grande Elias, quem purificara e tornara fecundas estas águas, antigamente salobras (2Rs 2, 14-22).

O texto evangélico dá apenas alguns dados sobre quem foi Bartimeu – embora conserve seu nome, detalhe pouco freqüente nas histórias de milagres – e sobre a origem de sua cegueira etc. Neste episódio, Bartimeu aparece como um homem que esteve a ponto de suicidar-se. Sua vida fracassada – no ofício, no matrimônio, em suas amizades – tornou-se insuportável. Tocou fundo em seu desespero e, a partir desse descer ao mais fundo do poço – aprendeu o que podia ser a esperança. O milagre que Jesus fará sobre seus olhos mortos será um sinal de que, apesar de tudo, a vida sempre tem sentido. Um sentido às vezes obscuro a descobrir, difícil de entender – isso sabem muito bem os que sofreram muito – mas um sentido que só pode aparecer se dermos tempo à vida para que ela nos mostre o que nos tem reservado.

O suicídio é um fato raríssimo na Bíblia. Aparece um só vez em todo o Antigo Testamento (2Sm 17,23). Outros casos são os dos guerreiros que se matam antes de cair nas mãos do inimigo, como aconteceu com Saul, primeiro rei de Israel (1Sm 31, 1-6), mas essas mortes têm outro sentido bem diferente do suicídio “frio”. No Novo Testamento, o único caso de suicídio é o de Judas. Pode ser que isso se deva ao grande apreço à vida característico do povo de Israel. Para os israelitas, a vida vinha de Deus e só a Deus pertencia. Viver era o destino do ser humano e sempre era melhor que a morte. Alguns livros do AT, marcados por um certo pessimismo, chegaram a afirmar que era melhor a morte que uma vida de enfermidade (Eclesisastes 30, 14-17), mas em todo caso, Israel foi um povo vitalista.

No evangelho não há uma só palavra explícita que oriente a reflexão cristã a respeito do suicídio. Mas, a partir das atitudes de Jesus e de suas palavras, podemos dizer que, em termos cristãos, não deve haver condenação do suicida. (Às vezes se lhes negaram sepultura em cemitérios da Igreja como castigo póstumo). Chega-se ao suicídio pelo desespero, pelo medo, por um forte desajuste psíquico etc. Nenhuma das causas que podem estar na base de uma decisão tão dramática, pode ser motivo de rechaço ou de condenação, pois todo esse conjunto de debilidades encontrou sempre em Jesus acolhida e compreensão.

Neste episódio, Bartimeu tem algo do Jó bíblico, personagem que se rebelou contra Deus porque considerava que suas dores era imerecidas: enfermidade, ruína, abandono por parte de seus amigos (Jó 3, 1-4; 20-23; 6, 2-4). No final do livro de Jó, ele diz a Deus as mesmas palavras que aparecem na boca de Bartimeu: “Eu te conhecia só de ouvir falar, mas agora estou te vendo com meus olhos…” (Jó 42, 5). Embora devamos fugir da dor, tentar afastá-la, reduzi-la e combatê-la, para sermos fiéis à vontade do Deus da vida, às vezes não podemos escapar dela. E temos de submeter-nos às nossas limitações. Neste caso a aceitação ativa da dor, pode nos tornar mais maduros, mais tolerantes, mais compreensivos. Em uma palavra, mais sábios diante da vida. E também mais sábios diante do mistério de Deus. A dor pode servir de porta para uma nova forma de ver a realidade de Deus. Como aconteceu com Jó e com Bartimeu.

(Mc 10, 46-52; Lc 18, 35-43)