VESTIDA DE MAR
Vou dormir, nodriza minha, deita-me.
Ponha-me uma lâmpada à cabeceira.
Alfonsina Storni, poeta argentina do século vinte.
EFEITO ONDAS DE MAR
ALFONSINA
Mar, eu sonhava ser como você era,
lá nas tardes que a vida minha
sob as horas cálidas se abria.
Ah, eu sonhava ser como você era.
CONTROL ALFONSINA E O MAR (INSTRUMENTAL)
MULHER Alfonsina tinha o cabelo inteiramente prateado para seus vinte cinco anos. Cabelo bonito como luz da lua do meio dia. Seus olhos azuis, o empinado nariz e a pele rosada, lhe davam um ar infantil que desmentia sua conversação sagaz e de mulher madura.
LOCUTOR Assim a descrevia Gabriela Mistral. Alfonsina Storni, professora e jornalista. Um mito da poesia argentina do século vinte.
CONTROL PIAZZOLANDO
LOCUTOR Alfonsina Storni nasceu em 29 de maio de 1892 em Sala Capriasca, região suiça de fala italiana.
ALFONSINA Me chamaram Alfonsina, que quer dizer “disposta a tudo”.
LOCUTOR Quando ainda era muito criança, a família Storni se trasladou a Argentina. Alos 12 anos, Alfonsina escreveu seu primeiro poema centrado na morte e o deixou sob a almofada de sua mãe. Na manhã seguinte…
MÃE Mas que estás escrevendo, Alfonsina, filha? A vida é doce. Alegra essa cara, bambina!
CONTROL PIAZZOLANDO
LOCUTOR No inicio do século, a família Storni se trasladou à cidade de Rosário. À morte de seu pai, Alfonsina teve que abandonar seus estudos e começar a trabalhar. Foi meseira, costureira e atriz suplente numa companhia de teatro.
ALFONSINA Aqui conheci as melhores obras clássicas e contemporâneas. Mas sendo quase uma criança, essa vida se me fez insuportável.
LOCUTOR Alfonsina deixou o teatro e decidiu estudar para professora rural. Mas sua urgência era a poesia.
ALFONSINA Escriveu como um médium, sob o ditado de seres misteriosos que me revelam os pensamentos. Não tenho tempo de razoá-los. Se atropelam e decem em minhas mãos a grandes saltos.Tremo e tenho medo.
LOCUTOR Todavia muito jovem, lhe chlegou o amor.
ALFONSINA Te lembras que a tarde morria
e enquanto sussurrava: “Minha! Minha!”
como um garoto me pus a soluçar?
LOCUTOR O homem estava casado e a deixou grávida. Alfonsina viajou a Buenos Aires e deu a luz a seu filho Alejandro. Tinha 20 anos.
ALFONSINA Eu tenho um filho fruto do amor, do amor sem lei,
CONTROL RÁFAGA MUSICAL
LOCUTOR Já em Buenos Aires publica seu primeiro livro e conhece muitos escritores argentinos e uruguaios, entre eles José Ingenieros, seu grande amigo e protetor. Também a Horácio Quiroga, quem lhe propõe viver juntos em Missões, o que Alfonsina não aceita.
MULHER Não, Alfonsina não chegou a estar na vanguarda da poética argentina dos anos vinte. Os varões se cuidaram de mantê-la bem a margem. Um deles, Jorge Luis Borges, dizia que seus escritos eram fofoca de comadrizinha
LOCUTOR Mas ela seguia escrevendo com maior paixão. Ganhava prêmios, publicava livros. Poeta e jornalista, denunciava as injustiças sociais de seu tempo e participava ativamente no movimento de mulheres.
ALFONSINA A mulher poderá não desejar participar na luta política, mas desde o momento que pensa e discute em voz alta as vantagens ou erros do feminismo, já é feminista.
CONTROL EDITH PIAF
LOCUTOR Noss anos trinta realiza duas viagens a Europa com sua amiga Blanca da Vega. Ao voltar a Buenos Aires lhe descubrem um tumor no peito.
MULHER Alfonsina tinha medo da dor e a da morte e não quis seguir a terapia de raios. Se fechou em si mesma e apenas saía à rua.
CONTROL INSTRUMENTAL
LOCUTOR Certo dia, Alfonsina Storni viajou só a Mar del Plata. Ali escreveu:
ALFONSINA
Vou dormir, nodriza minha, deita-me.
Ponha-me uma lâmpada à cabeceira.
Ah, um encargo:
si ele chama novamente por telefone
diga-lhe que não insista, que saí…
LOCUTOR Quém ia chamá-la? O editor de seu último livro? Seu filho Alejandro? Um novo amor?
CONTROL INSTRUMENTAL
LOCUTOR Em 25 de outubro de 1938, Alfonsina abandonou o quarto do hotel e se dirigiu ao mar. Era uma da madrugada.
EFECTO ONDAS
LOCUTOR Dois operários descubriram seu cadáver na praia La Perla, Mar del Plata.
CONTROL
Te vas Alfonsina com tua solidão
que poemas novos foste buscar?
E uma voz antiga de vento e de mar
te requebra a alma
e a está chamando
e te vas, para lá como em sonhos,
dormida Alfonsina, vestida de mar.
Gabriela De Cicco, Hermana Marginal: Alfonsina Storni, Los lanzallamas, Rosario, 1999.