118- DESCEU AOS INFERNOS

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Centurião: O rei Herodes está devolvendo o prisioneiro, governador Pilatos, e mandou-me dizer-lhe que confirma qualquer decisão que o senhor tome.

Pilatos: É mesmo? Quer dizer que nem Herodes quis assumir o problema de seu súdito…

Centurião: Ele também mandou dizer ao senhor que recebeu um carregamento do melhor vinho da Arábia. E que hoje, ao entardecer, véspera do grande sábado, gostaria de prová-lo com o senhor…

Pilatos: Muito bem, muito bem, gosto mais disso…

Centurião: Bom vinho e boas mulheres… O senhor já sabe muito bem como são as festas no palácio do tetrarca…

Pilatos. É claro que eu sei. Não há sem-vergonha maior que ele em todo o país. Mas é preciso reconhecer que ele organiza uma bela farra melhor que ninguém. Mande um mensageiro e diga a Herodes que seremos muito pontuais na chegada à festa… E muito impontuais para sair dela!

Centurião: Entendido, governador.

Pilatos: Bem, centurião, pode retirar-se.

Centurião: Com o seu perdão, governador. Estou com o prisioneiro lá em baixo. O que faço com ele?

Pilatos: É mesmo… estava me esquecendo do nazareno… Faça-o falar. Quero mais dados sobre esse grupo com que ele trabalha.

Centurião: Açoites?

Pilatos: Açoites e o que mais for preciso. Até que fale. Investigue que planos ele tem, onde se reúnem e, sobretudo, quem mais está na conspiração. Quero nomes, está entendendo? Que desembuche quem são os outros rebeldes que andam com ele e os contatos que tenham nas províncias.

Centurião: Deixe por minha conta, governador.

Pilatos: Fique esperto. O nazareno é um galinho bravo.

Centurião: Pois lhe arrancaremos as penas para que cante melhor…!

Do palácio de Herodes, no bairro alto de Jerusalém, os soldados haviam voltado à torre Antônia trazendo Jesus bem guardado. Sem nos importar com os golpes recebidos na frente do palácio do rei Galileu, voltamos a nos juntar ao pé da fortaleza romana, pedindo aos gritos a liberdade de Jesus e dos que haviam sido presos também durante aqueles dias de festa…

Um homem: Soltem Jesus! Esse homem é inocente!

Uma mulher: Liberdade para Jesus! Liberdade para os presos!

Naquela sexta-feira, apesar da chuva, a esplanada do Templo transbordava de peregrinos que compravam animais e os levavam a sacrificar no átrio dos sacerdotes. Os cordeiros, em fila, sem protestar, eram degolados um atrás do outro sobre a pedra do altar que já estava empapada de sangue… Mas muitos peregrinos, quando ouviram o alvoroço diante do quartel romano, deixaram o Templo e se uniram a nós para protestar…

Todos: Liberdade, liberdade, liberdade!!

No meio daquela algazarra, vimos que o sumo sacerdote José Caifás entrava na torre Antônia pelo passadiço particular que comunicava o Templo com o quartel romano…

Pilatos: Uma anistia? É isso que você veio sugerir, excelência?… Eu já tinha pensado em enforcar todos eles para que sirvam de escarmento!

Caifás: Uma coisa não impede a outra, governador. Nossos sábios dizem: “Com uma mão se corrige, com a outra se derrama azeite”.

Pilatos: Muito me admira sua sensatez, ilustre Caifás. Vou acabar nomeando-o conselheiro do Estado. Fale, fale, estou ouvindo…

Caifás: O povo pede liberdade para os presos, governador. Muito bem. Conceda algum indulto. Assim ficarão mais tranqüilos. E levante também algumas cruzes. Assim escarmentarão.

Pilatos: Qual o preso que você quer libertar?

Caifás: E por que não permite que seja o próprio povo a escolher?

Pilatos: Se os deixar escolher, pedirão pelo nazareno, tenho certeza.

Caifás: A não ser que meus homens se encarreguem do assunto. Deixe isso em minhas mãos, governador. Pedirão, por exemplo… por Barrabás. Sim, é isto, solte Barrabás. O que acha?

Pilatos: Não. Barrabás é um elemento perigoso. E já tivemos bastante trabalho para enjaulá-lo!

Caifás: Abre-se a jaula, mas o pássaro terá as asas cortadas… Não poderá voar muito longe…

Pilatos: Entendo, entendo, excelência… Não é má idéia… Com certeza o senhor irá provar o vinho árabe do tetrarca Herodes?

Caifás: Mas, claro que sim… espero que até lá tenhamos resolvido o caso do nazareno… E terá sido condenado à morte, não é mesmo?

Pilatos: Antes quero que ele bata com a língua nos dentes para sabermos quem são seus colaboradores e os que estão metidos na conspiração. Eu o tenho lá em baixo, no inferno. O centurião Aníbal está cuidando dele…

O centurião chamou um de seus verdugos e juntos empurraram Jesus para os calabouços da torre Antônia. Os soldados romanos chamavam aquele lugar de Inferno. Era um sótão úmido e escuro, que cheirava a sangue e escrementos, onde se torturava os presos. Sobre as paredes de pedra podiam-se ver as argolas, os grilhões, os ferrões para arrancar unhas e vazar olhos, as facas para castrar… A um canto, amontoados, os paus das cruzes e os torniquetes… No centro, o tronco para desconjuntar os membros e as colunas baixas para flagelar os detidos… Nos dias de festa, o Inferno ficava cheio. Uma fila de patriotas judeus esperava sua vez para serem açoitados e torturados. Muitos zelotas e jovens simpatizantes do movimento haviam morrido naquela masmorra depois das 39 chibatadas…

Centurião: Agora é você, amiguinho, vamos ver quanto agüenta…

Levaram Jesus até uma daquelas colunas truncadas que serviam para o tormento dos açoites. A pedra estava empapada do sangue dos que haviam passado antes…

Centurião: Vai falar ou não?… Quero os nomes dos que conspiram com você.

Jesus: Não vou dizer nada.

Centurião: Então nós vamos afrouxar um pouco sua língua… Venha, tirem a túnica dele, e amarrem-no.

O verdugo deixou Jesus quase nu e o empurrou sobre a coluna. Amarrou suas mãos e pés em uma argola cravada na base, de modo que todo o corpo, com a cabeça para baixo, acabava formando um arco sobre a pedra… Depois, retirou o flagelo da parede. Era um chicote com oito correias de couro, cada uma finalizada com uma bolinha de ferro do tamanho de uma amêndoa. As bolinhas tinham pequenos ganchos para desgrudar a carne das costas…

Centurião: Fale! Onde estão os que vieram da Galiléia para agitar durante a festa?… Quem apóia você aqui na capital? Fale, desgraçado!…

O verdugo apertou o cabo de madeira e se pôs a balançar as correias esperando a ordem do centurião…

Centurião: Comece.

Ele levantou o chicote no ar e descarregou com violência sobre as costas nuas de Jesus…

Centurião: Já se lembrou como se chamam?… Ainda não?… Para quem você trabalha?… Quem o paga?… Vamos, fale!… Estou mandando falar!…

O sangue começou a correr pelas suas costas… As bolinhas de ferro se agarravam na carne arrancando tiras de pele e rasgando os músculos…

Centurião: Confesse! Quem está com você?… Onde seus companheiros estão escondidos?…

O braço do verdugo ia e vinha descarregando o flagelo sobre o corpo dobrado de Jesus. O centurião, diante dele, o agarrou pelos cabelos da cabeça e levantou seu rosto…

Centurião: Cão judeu, fale!… Estou mandando falar!… Quem são os outros? Onde se reúnem?… Vamos lá, agora, nas pernas!

O verdugo se colocou de lado e estalou o chicote sobre as coxas, sobre as pantorilhas, sobre os tendões dos pés. O corpo de Jesus, arqueado, desmoronou sobre a coluna, começando a sufocar…

Centurião: Confessa! Quem mais está com você?… Maldição, pegue mais duro, até que fale!!

O governador romano desceu ao Lajeado e mandou abrir os portões que davam ao pátio, para que todos os que nos apertávamos diante da fortaleza pudéssemos ouvi-lo… Então nos demos conta que nas primeiras filas se havia postado um grupo de familiares e empregados dos sacerdotes do Templo e dos magistrados do Sinédrio… Pôncio Pilatos, sentado na poltrona do tribunal, mandou fazer silêncio…

Pilatos: Cidadãos, estamos em festa. Roma é magnânima e escuta a voz do povo. Vocês pedem liberdade para os presos. Pois bem, a terão!

Quando o governador disse aquilo, todos nos olhamos aliviados. Maria, a mãe de Jesus, que estava ao meu lado, sorriu meio abobada, como se não conseguisse acreditar no que havia ouvido… Pôncio Pilatos, bem barbeado e envolto em sua toga de cor púrpura, continuou falando…

Pilatos: Darei anistia para um preso. Àquele que vocês mesmos escolherem. Não ouviram? Quem vocês querem que eu solte?

Claque: Barrabás! Barrabás!

Povo: Jesus! Jesus!

Tudo foi muito rápido e muito confuso. Os das primeiras filas berravam freneticamente pedindo Barrabás. Nós, atrás, a imensa maioria, pedíamos aos gritos por Jesus… O governador levantou as mãos ordenando silêncio…

Pilatos: Calem-se!… Não posso ouvir com tanto alvoroço… Vocês, soldados, controlem a chusma… Repito, quem vocês querem que eu solte?

Os soldados nos empurraram para trás com seus escudos e nos ameaçavam, enquanto a claque dos sacerdotes e magistrados gritava protegida pela tropa romana…

Pilatos: Muito bem. Se o povo pede por Barrabás, Barrabás fica em liberdade.

O soldados trouxeram o dirigente zelota da masmorra e o soltaram no meio da multidão. Barrabás esfregou os pulsos esfolados e, sem se deter para falar com ninguém, escapuliu por entre as ruas do bairro de Efraim. Atrás dele, disfarçadamente, iam alguns guardas que tinham por missão detê-lo quando passassem as festas…

Enquanto isso no Inferno…

Centurião: Quem trabalha com você? Como se chamam…?

As correias do chicote salpicavam de sangue as paredes da cela. As pequenas bolas de ferro afundavam-se cada vez mais nos tecidos machucados, incrustando-se entre as costelas… As costas de Jesus eram uma massa de carne sanguinolenta…

Centurião: Fale, maldito!… Estou mandando falar!…

Verdugo: Este homem já não pode falar, centurião. Está quase morto.

Centurião: Quantas você lhe deu?

Verdugo: Está perto das trinta e nove…

Centurião: Então, complete-as.

Verdugo: E se ele morrer…?

Centurião: Afinal, já não serve para quase nada… Pela última vez: confessa! Diga os nomes de seus companheiros!

Mas Jesus não disse nada. Quando o centurião lhe levantou o rosto, estava com os olhos brancos. Havia desmaiado.

Centurião: Desamarre esse trapo e jogue-o num canto qualquer. Maldição com esses caras, não se consegue tirar uma palavra deles. Parecem mudos.

Ficou tão destroçado que não parecia um homem.

Foi açoitado, ferido, humilhado, mas não abriu a boca.

Foi maltratado por gente sem piedade,

moído a golpes pelos injustos,

mas suportou a dor por nós.

Como um cordeiro levado à degola sem resistir,

como uma ovelha muda diante dos que lhe tosquiam o lombo,

ele também não abriu a boca nem disse uma palavra.

*Comentários*

No Credo dizemos esta fórmula: “… foi crucificado, morto e sepultado, desceu aos infernos…”. “Descer aos infernos” significa que Jesus morreu realmente, que como todos os homens se afundou na limitação e angústia da morte. “Os infernos” na linguagem tradicional de Israel eram o “sheol”, o abismo onde iam parar todos os homens, tanto os bons como os maus, ao término da vida. Era um lugar de silêncio, de tristeza, onde não existia nenhuma esperança. Neste episódio “o inferno” é a câmara de torturas da Torre Antônia. Jesus desceu também a este inferno antes de descer ao da morte.

Roma torturava seus prisioneiros. A morte de Jesus foi um assassinato decretado por um poder imperial. Não devemos ver em Jesus um réu que sofre sozinho ou o “homem que mais sofreu”, o único que passou por esse trago amargo. Milhares de israelitas foram crucificados e torturados antes dele e milharem o foram depois. Não foi o povo quem sugeriu ou pediu a libertação de Barrabás, dirigente zelota a quem as autoridades procuravam desde um bom tempo por sua participação em revoltas populares violentas. Inclusive é possível que durante os acontecimentos do domingo de Ramos no Templo, Barrabás e outros grupos revolucionários tenham aproveitado a confusão para usar armas e matar alguns soldados. Foram as autoridades religiosas, combinadas depois com uma claque comprada, quem quiseram com esse ato de “indulgência” de soltar um preso, revestir ainda mais de legalidades o processo contra Jesus. Fica bem claro nos evangelhos que quem pedia por Barrabás foram os sacerdotes e sua camarilha (Mc 15, 11; Jo 19, 6). Naquele momento, os chefes religiosos e as autoridades romanas preferem libertar um zelota com clara opção violenta do que Jesus.

As leis judaicas permitiam flagelar os acusados. Usavam-se varas para este castigo e no tempo do evangelho era usual açoitar na própria sinagoga. Todos os doutores e magistrados tinham autorização para decretar esta pena. A violação, a calúnia, a transgressão da Lei eram motivo suficiente para sofrê-la. Posteriormente, as varas foram substituídas por um chicote de três correias. Os golpes não podiam passar de 40 – por isto, dava-se ordinariamente 30 – e a tradição indicava que devia-se açoitar 13 vezes sobre o peito desnudo e outras treze vezes sobre cada lado das costas. Os romanos popularizaram ainda mais esta tortura. Empregavam-na por vários motivos: para castigar os escravos rebeldes, por faltas graves cometidas pelos soldados em seu serviço militar, como tormento para arrancar confissões de seus prisioneiros e como prelúdio do tormento da cruz. Entre os romanos havia três tipos de flagelos. Um tinha três cordas nas quais se trançavam pedacinhos de osso. Os outros dois tinham as cordas com nós de espaço em espaço e, nas extremidades penduravam bolinhas de chumbo. Um desses flagelos, o de correias mais numerosas e largas, é que foi usado em Jesus. Embora fossem só 39 golpes, aquela era uma tortura realmente desumana, que causava a morte com muita freqüência.

Na basílica do Santo Sepulcro de Jerusalém há uma pequena capela onde se conserva uma coluna das que eram usadas no tempo de Jesus para açoitar os prisioneiros, similar àquela na qual Jesus foi torturado. É de pedra preta, grossa e baixa, com argolas nas quais se amarrava o corpo desnudo e arqueado do prisioneiro.

O silêncio de Jesus diante de seus torturadores não deve ser interpretado neste episódio como um silêncio passivo, de mansidão simplista, de “entrega” vazia de sentido a seus inimigos. Jesus está sim se entregando, mas por seus companheiros, para salvá-los. Seu silêncio é um calar solidário para não delatar ninguém, para não comprometer os seus. Ele não abriu a boca, segundo a bela imagem do Servo de Javé anunciado pelo profeta Isaias (Is 53, 3-7).Depois de tê-la aberto com tanta firmeza para denunciar os injustos, não o fez quando os demais corriam perigo de vida. Seu silêncio solidário o torna irmão dos milhares de homens e mulheres que na tortura souberam resistir inclusiva até à morte para não delatar seus companheiros de luta.

(Mt 27, 26; Mc 15, 15; Jo 19, 1)