29- O TRIGO DOS POBRES

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O dia em que o granizo arruinou o trigo que estava a ponto de colher era sábado. Todo Israel descansava no sábado. As mulheres não acendiam o fogão nem os homens iam ao campo. O sétimo dia da semana está consagrado a Deus. Mas aquele sábado não foi para nós um dia de descanso. Estávamos reunidos na colina das Sete Fontes, a que olha para o lago, com os camponeses de Cafarnaum que haviam perdido sua colheita…

Um homem: Este ano será ruim, sim. Será um ano de fome.

Uma velha: Tudo se perdeu. O granizo acabou com tudo!

Outro homem: Com tudo, não, velha. Na fazenda do Eliazim há muito trigo que não se estragou.

Um homem: E do fazendeiro Fanuel, a mesma coisa. Esses safados têm tanta terra e tantos celeiros que nem o céu pode arruiná-los.

Outro homem: Os ricos sempre caem de pé, como os gatos. Eles nunca perdem. Agora aumentarão os preços. Venderão a farinha como se fosse ouro em pó!

Uma mulher: E a nós, que um raio nos parta, não é mesmo?!

Homem: Que remédio nos resta? Apertar ainda mais a cinta. Contra o céu nada se pode fazer!

Velha: Contra o céu não, mas contra esses atravessadores, sim.

Homem: Ahhá? E o que podemos fazer? Invadir as fazendas deles?

Velha: E por que não? O que diziam as leis antigas? Que os pobres recolham o que sobra nas fazendas dos ricos para que ninguém passe necessidade em Israel.

Homem: A velha Débora tem razão. Moisés mandou os ricos deixarem os restolhos para que os infelizes pudessem comer.

Mulher: Como é? Moisés disse isso mesmo? Pois então vamos cumprir a lei de Moisés, caramba!…

Quando a mulher do camponês Ismael disse aquelas palavras, todos nos olhamos indecisos. Nós, homens, coçamos a cabeça e as mulheres cochichavam umas com as outras…

Mulher: O que estamos esperando?… O forasteiro de Nazaré não disse a todos vocês que Deus está do nosso lado e que as coisas vão mudar? Pois então vamos dar um empurrãozinho para que elas mudem mais depressa!… Eia, vamos arrancar espigas na fazenda do Eliazim!

Homem: Sim, sim, vamos lá, vamos!

Velha: Um momento, um momento!… Vamos lá sim, mas sem alvoroçar, sem correr, que isso Moisés também mandou quando levou os israelitas pelo deserto em ordem unida. E a justiça, quando é reclamada com boas maneiras, é muito mais justa!

Todos: Está certo, vovó!… Andando, companheiros!

Com a mulher de Ismael e a velha Débora à frente, todos nos pusemos em movimento, colina abaixo, até o enorme terreno que começava ao norte das Sete Fontes. Muitos quilômetros de terra fértil, propriedade do poderoso Eliazim…

Homem: Mas, vocês estão ficando loucos?… Aonde vamos? Não se pode fazer uma coisa dessas!

Mulher: Quem disse que não?

Homem: Mas, como vamos entrar na fazenda desse senhor, assim sem mais nem menos, e começar a cortar espigas?

Mulher: O avarento do Eliazim ainda tem os celeiros cheios da colheita passada.

Homem: Sim, mas…

Mulher: Nada de mas!… Ele tem sobrando!

Outro homem: E para nós está faltando!… Venham, vamos todos juntos! Em nome de Deus!

Éramos um exército de esfarrapados. Chapinhando pelo campo, escorregando na ladeira lamacenta, formos nos aproximando dos moirões que cercavam a propriedade de Eliazim. O granizo havia destruído as plantações, mas a fazenda era tão grande que ficaram, salpicadas aqui e acolá, muitas espigas que não haviam se estragado…

Homem: Olhem, ainda ficou bastante trigo!

Velha: Pois vamos arrancá-lo! E não se preocupem porque Rute começou do mesmo jeito e no final deu tudo certo!

Nós nos espalhamos pelos trigais inundados, como um formigueiro que se esparrama depois da tempestade. Enlameados até os joelhos, começamos a cortar as espigas fortes que haviam suportado a violência do temporal. Os homens sacaram suas facas e começaram a segar. Atrás deles, as mulheres iam colocando em seus aventais o trigo molhado…

Velha: Recolham tudo o que puderem, tudo o que lhes caiba no colo!… Levem uma medida cheia, repleta até a borda do avental!

Homem: Escute, velha, não estamos fazendo nada de errado?

Velha: Ai, meu filho, eu não sei, mas dizem que ladrão que rouba de ladrão tem cem anos de perdão!…

Homem: E você, nazareno, o que acha disso tudo?

Jesus: Pois eu penso que temos de… ai!…

Homem: Cuidado, Jesus…!

Jesus escorregou e caiu sentado numa poça de água. Quando o vimos no chão, com lama até o nariz, nos pusemos a rir a gargalhadas…

Homem: Ei, rapaz, terra não se come!…

Mulher: Olhem só como ficou o forasteiro, como Adão, quando Deus o fabricou no paraíso…!

Jesus também ria, como se lhe fizessem cócegas. Por fim, com a túnica empapada e apoiando-se em umas pedras, conseguiu levantar-se daquele lodaçal…

Jesus: O que é a vida, heim, vizinhos… Até há pouco estávamos chorando e agora estamos rindo… As coisas mudam, caramba… Nós podemos mudá-las com nossos braços, com o braço de Deus que nos apóia… Sim, nós pobres iremos adiante! Amanhã tudo será diferente. As dores de agora nós as torceremos como panos molhados e não mais haverá lágrimas nem gritos. E então nos alegraremos, sim, e Deus também estará contente, porque Deus está do nosso lado, porque ele vai encostar seu ombro e vai nos ajudar a fabricar um mundo novo com essa argila velha.

E continuamos arrancando espigas. Jesus recolhia ao meu lado e me lembro que continuava rindo do seu tombo. Pedro, Tiago e André ajudavam um grupo de camponeses que havia adentrado mais na fazenda… Quando já tínhamos cortado bastante trigo, chegaram os capatazes de Eliazim. Vinham correndo em nossa direção com paus e cachorros de caça…

Capataz: Ladrões, Ladrões!

Houve uma grande confusão. A maioria conseguiu pular por cima dos moirões com os braços e os aventais cheios de trigo. Outros abandonaram o trigo e as sandálias e fugiram como coelhos assustados, saltando sobre as poças de lama…

Eliazim: Pode-se saber quem organizou esta malfeitoria em minha fazenda? Com que direito vocês se metem a roubar em minha propriedade?

Mulher: Com o direito de Deus! Todos viemos em nome de Deus!

Eliazim: Em nome de Deus, não é mesmo?… Pois eu digo que foi em nome do diabo! Quem rouba é um filho do diabo!

Homem: E aquele que chupa o sangue de seus empregados como você, é o pai do diabo!

Eliazim: Feche o bico ou mandarei açoitá-lo com varas!… Assim aprenderão a respeitar as leis, ladrões!

Homem: Nós não estávamos roubando! Por que nos chama de ladrões?

Eliazim: Ah, não? E como tenho que chamá-los então? Eu os pego com as mãos no meu trigo, arrancando as poucas espigas que ficaram depois do dilúvio desta manhã, e não são ladrões?

Mulher: Não, estávamos cumprindo a lei de Deus.

Abiel: Cale-se língua comprida! Não torne a mencionar o nome de Deus com sua boca nojenta!

Os capatazes de Eliazim nos levaram a um dos pátios da casa do fazendeiro. Com eles estavam dois escribas amigos seus, o mestre Abiel e o mestre Josafá…

Abiel: Eu digo, Dom Eliazim, que o senhor devia investigar quem anda por trás desta conspiração… quem são os responsáveis.

Eliazim: Onde estão os cabeças, heim? Quem os aconselhou a virem me roubar?

Velha: A fome! A fome nos aconselhou! Precisamos de trigo para nossos filhos!

Eliazim: A fome, não é mesmo? Se não fossem tão vagabundos não passariam fome. A fome vem da vagabundagem!

Mulher: A fome vem da avareza de gente como você!

Eliazim: Se você gritar de novo farei cortar sua língua e suas mãos!… Mas o que vocês estão pensando? Que vou permitir que me roubem descaradamente em pleno dia? Vou chamar o capitão romano e não sairão do cárcere até que me tenham pago todos os prejuízos, ouviram bem?

Jesus, que havia estado calado até então, foi quem respondeu ao fazendeiro…

Jesus: Não lhe basta o trigo que está apodrecendo em seus celeiros? Quer tirar-nos também umas poucas espigas que lhe estão sobrando?

Eliazim: Ahhá…? Então o gato está pondo as unhas pra fora…? Pois escute o que lhe digo, forasteiro: você e todos os outros vão para a cadeia com um pontapé só!

Jesus: Então você teria de prender também o rei Davi.

Josafá: O que disse esse maldito?

Jesus: Disse que Davi fez uma coisa pior que nós e Davi foi um grande santo.

Abiel: Que despropósito você está dizendo? O que o rei Davi tem a ver com isso?

Josafá: Com quem você acha que está falando, camponês? Somos mestres da Lei, da escola de Ben Sirá.

Jesus: Pois se são tão mestres assim, se recordarão do que fez o rei Davi quando chegou a Nob com seus companheiros. Tinham fome e entraram, não em uma fazenda, mas no mesmíssimo templo, na casa de Deus. E comeram o pão do altar, consagrado ao Senhor… Estão percebendo? Roubaram o próprio Deus! E Deus não os castigou porque tinham fome! Um homem faminto é mais sagrado que o santo templo do Altíssimo!

Josafá: Mas que besteira é essa? O que está dizendo este insolente? Por sua própria língua você se delata. Você deve ser o agitador de toda essa ralé. Venha, venha diante do tribunal com essa historinha de rei Davi, pra ver a surra de pau que você vai levar…!

Mulher: Nós colhemos os restolhos que nos pertencem segundo Moisés!

Eliazim: Cale-se, rameira! Isto é meu, está entendendo? Meu e de mais ninguém! Daqui até a lagoa de Meron, toda esta terra é minha! E ninguém de vocês pode entrar nela para colher um só grão de trigo!

Jesus: Nós roubamos umas quantas espigas, mas você roubou a terra, o que é pior. Porque a Escritura diz que a terra é de Deus e ninguém pode se apossar dela. Você é mais ladrão que nós!

Eliazim: Vocês estão acabando com a minha paciência, charlatães…! Roubam o que é meu e ainda por cima tenho de agüentar suas impertinências?!

Abiel: No entanto, há algo pior, Dom Eliazim. Não se esqueça de que dia é hoje.

Josafá: Hoje é sábado, dia santo. Esses homens violaram duplamente a Lei, roubando e faltando contra o descanso. Vocês, sem-vergonhas, reconhecem o delito que se lançaram em cima, desrespeitando a sagrada Lei de Deus?

Jesus: O homem não foi feito para Lei, mas a Lei para o homem. Se vocês compreendessem a Lei, não estariam nos condenando, pois não cometemos nenhuma falta. Porque a primeira lei que Deus manda é que todos tenhamos o necessário para viver.

Todos: Muito bem, caramba! É assim que se fala!

Eliazim: Chega de conversa fiada! Iremos agora mesmo diante do rabino da sinagoga! E o tribunal verá o que fazer com vocês! Vamos depressa!

O alvoroço foi muito grande. Fora da fazenda, muitos camponeses nos esperavam, homens e mulheres, que se juntaram a nós, a caminho da cidade. O fazendeiro e os escribas avisaram os soldados romanos para que garantissem a ordem e nos conduzissem até a sinagoga. Lá, os mestres da Lei iriam julgar o que havíamos feito.

*Comentários*

Este episódio está em estreita relação com o anterior. À proclamação de Jesus de que Deus toma partido dos pobres, sofrendo com eles, anunciando-lhes uma mudança e lutando ao seu lado, corresponde a prática do mesmo Jesus e dos pobres que acreditam nesse anúncio, tiram dele as conseqüências e se põem a caminho para tornar real esta libertação que lhes anuncia. O evangelho é não só palavra de libertação mas, também, ação libertadora que realizam aqueles que seguem o caminho de Jesus. Em nossas comunidades, o evangelho não pode esgotar-se na denúncia, somente em palavras, mas estas precisam se traduzir em ações concretas, inspiradas na mensagem de Jesus: ações de organização, de compromisso, de luta…

A cultura mediterrânea – a zona em que está situada a Palestina – é uma “cultura de trigo”, como a cultura centro-americana – a dos maias e astecas e a atual, ainda hoje – é uma “cultura do milho”. Como a cultura de muitos países tropicais é uma “cultura da banana” ou “do arroz”. O trigo era o principal cultivo da Palestina e constituía o grosso das importações de víveres do campo pelas cidades. As épocas de fome se caracterizaram pela escassez de trigo.

O trigo que se colhia na Galiléia era considerado de primeira qualidade. Nos campos dos arredores do lago, também em Cafarnaum, havia extensas plantações de trigo, muitas das quais pertenciam a uns poucos fazendeiros. Os latifúndios eram freqüentes no Norte e uma das reivindicações dos zelotas era uma reforma agrária pela qual se distribuiria justamente a terra. Isso lhes granjeava a simpatia dos camponeses e dos pequenos proprietários, enquanto que os grandes latifundiários eram colaboracionistas do poder romano, que lhes garantia a posse ilimitada de propriedades.

Quando as primeiras tribos de pastores chegaram à terra de Israel, começaram a distribuir as terras por famílias, conforme as iam ocupando. A propriedade da terra era uma herança familiar, e do ponto de vista religioso, considerava-se que Deus era o dono de toda a terra ( Lv 25, 23) e que superar os limites do patrimônio familiar era contrário à vontade de Deus. No entanto, nos tempos de Jesus e também antes, havia latifundiários, donos de grandes extensões de terra que, em algumas ocasiões, as adquiriam pelo simples recurso de mudar fraudulentamente as cercas da fazenda (Jó 24,2). Os profetas condenaram repetidamente a economia latifundiária (Is 5, 8; Os 5,10). O domínio imperial de Roma acentuou ainda mais esta economia injusta de açambarcamento de terras. Do ponto de vista econômico, a conseqüência mais visível da ocupação romana foi o processo de extensão da propriedade latifundiária à custa da propriedade comunal, que acabou por vir abaixo,empobrecendo aceleradamente o campesinato que, de pequeno proprietário, passou a ser mão de obra barata (diaristas), a serviço desses grandes proprietários.

Para frear a ambição, existiam em Israel leis sociais que limitavam a propriedade e tratavam de impedir a excessiva acumulação: o Ano da Graça, o Ano Sabático. E para proteger os pobres, os órfãos, a viúva e o estrangeiro existiam, além disso, outras leis pelas quais os proprietários tinham de ceder-lhes parte da semeadura e dos frutos que sobravam nas beiradas dos campos e nas árvores (Lv 19,10; Dt 24,19-22).

Os habitantes de Cafarnaum arrancam as espigas em um dia de sábado. A lei do sábado era o eixo de todo o sistema legal vigente em Israel nos tempos de Jesus. Violar esta lei voluntariamente e após uma primeira advertência, era razão suficiente para ser condenado à morte. A lei do sábado impedia de realizar qualquer tipo de trabalho ou esforço no dia santo. Na atualidade, não existe em nossos países nenhuma lei religioso-social equivalente àquela. O mesmo que Jesus proclamou em seu tempo sobre a supremacia do homem sobre a lei do sábado, nós cristãos devemos hoje proclamar com a mesma força e sentido social sobre a propriedade, ou como o formularia o papa João Paulo II: “A hipoteca social que pesa sobre toda propriedade”.

A mais antiga tradição da Igreja tem ressaltado que quando o pobre toma por necessidade o que sobra ao rico, não faz nada que mereça reprovação, nem deve por isso ser chamado de ladrão. Ladrão é quem retem o que o outro necessita. Sobre o “meu” e o “teu”, dizia São Basílio aos ricos e poderosos: “E que coisas, diga-me, são tuas? Tomaste-as de algum lugar e vieste com elas à vida?… Por haverem-se apoderado primeiro do que é comum, aos ricos se lhes dá o título de ocupação primeira… Quem é ladrão? Haverá que dar outro nome ao que não veste a um nu, se o pode fazer? Do faminto é o pão que tu reténs; do nu é o manto que tu guardas em teus baús; do descalço é o calçado que em tua casa apodrece…” (Homilia “Destruam”).

A ação coletiva e pacífica que realizam os habitantes de Cafarnaum para fazer valer o direito fundamental que tem todo homem de viver, de não morrer de fome, está apoiada nas antigas leis de Moisés. Para justificá-la, Jesus se inspira também no episódio do rei Davi no santuário de Nob (I Sam 21,1-7), onde os pães que Davi toma ao sentir fome são os pães da proposição, pães sagrados, dedicados ao culto, confeccionados com farinha especial por famílias dedicadas a isso. A grande liberdade com que age o rei, é uma antecipação do que sempre fará Jesus, para quem nenhuma lei tem valor se oprime o homem, se não está a serviço da vida. São Paulo dirá mais tarde que a lei dos cristãos não é outra que a liberdade (Gal 5,1-8).

(Mateus 12,1-8; Marcos 2, 23-28; Lucas 6 1-5)