A TAÇA DE CHÁ

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Protege-me, Senhor, da sabedoria que não chora.

NARRADORA O professor dava aulas numa prestigiosa universidade. Era respeitado e temido pelos seus alunos devido a seu grande domínio dos mais diversos temas…

PROFESSOR Como bem dizia Aristóteles, a substância está composta de potência e ato. Agora bem, o movimento, como trânsito da potência ao ato, em quatro possíveis causas…

ALUNO Professor!…

PROFESSOR A causa formal, a causa material…

ALUNO Professor, uma pergunta!

PROFESSOR Não me interrompam. Se atenderem bem a explicação, não necessitariam fazer nenhuma pergunta. (CARRASPEA)… Como íamos dizendo, a causa formal, a causa material…

CONTROLSICA DE TRANSIÇÃO

NARRADORA O professor foi convidado ao Japão, a entrevistar-se com um sábio que vivia retirado numa modesta casa de campo, dedicado ao estudo e a escritura…

SABIO Benvindo, professor!… Minha casa é sua e meus conhecimentos estão a sua disposição!

PROFESSOR Obrigado… Como me disse que se chamava você?

CONTROLSICA SUAVE

SABIO Sente-se, professor, e conversemos enquanto tomamos o chá.

PROFESOR Pois, como ia lhe dizendo, levando em conta a etimologia da palavra e a grafologia das letras, pude concluir que as explicações que se vêm dando…

SABIO Mas, sente-se… Fique à vontade…

NARRADORA Já instalado na casa do sábio, aquele professor arrogante começou a falar de um tema e de outro. Citava frases de famosos personagens, se referia aos inumeráveis livros lidos e às muitas conferências ditadas em tantos países…

PROFESSOR Ainda que David Hume disse que não se podia demonstrar, se supõe que na natureza os efeitos procedem de causas anteriores. Mas no mundo psicológico a miúdo sucede o contrário: as causas são posteriores aos efeitos. (SEGUE DE FUNDO)

EFEITO TAÇAS

SABIO Professor, lhe sirvo uma taça de chá?… Professor…

PROFESSOR Ah, sim, claro…

NARRADORA O sábio aproveitou uma pausa naquele monólogo do professor para brindar-lhe uma taça de chá.

PROFESSOR … E isto o confirma Platão, assim que podemos estar seguros de que se olhamos atentamente encontraremos uma causa para qualquer efeito presente, e também para seu contrário. Desta maneira…

NARRADORA Enquanto o professor falava, o sábio se dedicou a encher-lhe sua taça. Começou enchendo o chá pouco a pouco… Primeiro até a metade e logo até a borda da taça… Mas ao chegar aí não se deteve, se não que seguiu enchendo chá e mais chá, com toda a naturalidade do mundo, até que o líquido transbordou também o prato e começou a manchar o mantel.

PROFESSOR O caso mais extremo de divórcio entre teoria e prática é tal vez o de Schopenhauer, quem dizia que ninguém tem por que aplicar-se suas próprias idéias. Se poderia dizer em sua defesa que a reflexão teórica pode chegar a conclusões que depois não é tão fácil levar à prática…

NARRADORA O sábio seguia derramando o chá, sorrindo e escutando o professor, como se não estivesse acontecendo nada.

EFEITO CHARCO

PROFESSOR … Isto suposto, no terreno ideal dos conceitos… Mas… ouça… que é isto?… Pare, pare, a taça já está cheia!… Já não cabe mais!… Todo derramou-se!…

SABIO O mesmo acontece contigo.

PROFESSOR Como disse?

SABIO Tu também estás cheio de tua erudição, de tuas citações, de teus livros, de tuas idéias acerca de tudo… Não te cabe mais… Como poderás escutar-me ou aprender algo de mim se antes não esvazias tua taça?

PROFESSOR (RASPA A GARGANTA) Bom, eu… isto é, eu… é que eu…

SABIO Esvazia a tua taça —tu eu— primeiro.

CONTROLSICA NEW AGE

NARRADORA Protege-me, Senhor, da sabedoria que não chora. Da filosofia que não ri. E da grandeza que não se inclina diante dos pequenos. Khalil Gibrán.

BIBLIOGRAFIA
Conto popular japonês.