O BOM, O MAU E O FEIO DA LEI EQUATORIANA
Luzes e sombras da lei equatoriana de comunicação.
Há pouco, publicamos um radioclip felicitando a Lei de Comunicação Equatoriana, recentemente aprovada.(enlace)
_Hoje, neste Dia Interamericano da Radiodifusão, podemos fazer uma análise mais completa desta Lei, de suas luzes e também de suas sombras._
Em 14 de junho 2013 foi aprovada na Assembleia Nacional do Equador, onde o oficialismo tem ampla maioria, a Lei Orgânica de Comunicação. Esta Lei era uma exigência da Constituição de 2008.
Uma exigência não cumprida. Durante mais de quatro anos, os partidos de direita e os empresários dos grandes meios deram longos argumentando que, em assuntos de comunicação, a melhor lei é a que não existe. Invocando a Declaração de Chapultepec, diziam que qualquer regulação neste campo acaba atentando contra a liberdade de expressão.
Mas também os representantes da Aliança País, partido no governo, tinha pressa em aprovar uma lei de comunicação. Alguns, inclusive o Presidente Rafael Correa, afirmaram que Equador poderia continuar funcionando com a lei vigente que data do tempo da ditadura do general Rodríguez Lara em 1975. Esta lei, a mais de obsoleta, resultava abertamente discriminatória contra os meios comunitários.
Quem impulsionou a nova Lei de Comunicação? Desde 1995, várias organizações da sociedade civil lutaram para obter uma lei moderna e incluente. Ai estava o movimento indígena, a CONAIE. Ai estavam as emissoras de CORAPE, ALER, AMARC, CIESPAL, ALAI, OCLACC, RADIALISTAS APAIXONADAS E APAIXONADOS, O CHURO e outras redes de comunicação. Estas organizações, nacionais e internacionais, obtiveram um grande triunfo quando se aprovou a Constituição de 2008. Pela primeira vez nas vinte cartas constitucionais que o Equador já teve, se incluía o conceito de “comunitário”. O artigo 16 diz assim:
Todas as pessoas, em forma individual ou coletiva, têm direito à criação de meios de comunicação social, e ao acesso em igualdade de condições ao uso das frequências do espectro radioelétrico para a gestão de estações de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias.
O artigo 17 diz que o Estado, para fomentar a pluralidade e a diversidade na comunicação, garantirá a designação, através de métodos transparentes e em igualdade de condições, das frequências do espectro radioelétrico, para a gestão de estações de rádio e televisão públicas, privadas e comunitárias, e não permitirá o oligopólio ou monopólio, direto nem indireto, da propriedade dos meios de comunicação e do uso das frequências.
Foi a partir destes artigos constitucionais, conseguidos a base de muita paciência e muito lobby, que estas mesmas organizações reivindicaram uma demanda inegociável para a nova Lei que estava sendo redigida por uma Comissão Ocasional com maioria da Aliança País. A demanda era a distribuição equitativa das frequências de rádio e televisão entre os três setores.
Porque aí está a faca e o queijo na mão. Pois definir como quiser a liberdade de expressão, pode redigir todos os códigos de ética jornalística… mas quem tem as frequências é quem tem voz e imagem pública. Por isto, nossas organizações reivindicaram 33% de frequências para o setor público, outros 33% para o privado e outros 33% para o setor comunitário.
A batalha não foi fácil. Os empresários privados que concentravam, na época, 95% de todas as frequências, não queriam nem ouvir falar do bolo em três pedaços. Isto afetaria seriamente seus interesses. Mas os representantes da Aliança País também não. Alguns eram concessionários privados de frequências. Outros não entendiam a reivindicação. Lembro quando o então Vice-presidente da Assembleia, Rolando Panchana, chegou a dizer que em seus muitos anos como jornalista nunca tinha ouvido uma bobagem semelhante. O governo contava com umas especialistas venezuelanas que confirmaram a impossibilidade técnica da distribuição tripartite. Interesses cruzados, pretextos, ignorâncias.
Enquanto o debate na Assembleia continuava empantanado, recebemos dois fortes apoios. O primeiro, a aprovação da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual argentina, aprovada em 2009, que reserva 33% das frequências para meios sem fins lucrativos (esta mesma reserva estava contemplada na lei uruguaia de Radiodifusão Comunitária de 2007, pioneira neste tipo de distribuições do espectro). E em seguida, a Lei Geral de Telecomunicações da Bolívia, aprovada em 2011, que reserva 33% das frequências para meios públicos, 33% para privados e 34% para os meios comunitários (17% para social comunitário e outros 17% para povos indígenas originários e comunidades interculturais e afrobolivianas).
Com este respaldo e com o compromisso do senador Mauro Andino, da Aliança País, que presidia a Comissão onde estava redigindo a Lei, e que teve a sabedoria de assessorar-se do advogado Romel Jurado, pode redigir um projeto de Lei muito progressista, muito revolucionário, que acolhia as principais demandas da sociedade civil.
Este projeto entrou em debate no pleno da Assembleia Nacional anterior. Lamentavelmente e pela miopia de alguns companheiros do movimento indígena Pachakutik, não se conseguiram os votos necessários para aprová-lo. Uma grande perda, já que essa Lei, e não a que agora temos, teria sido uma referência na comunicação latino-americana.
*O BOM DA LEI*
► DIREITO À COMUNICAÇÃO*
A comunicação se reconhece, em fim, como um direito humano. Um direito a mesma altura que a saúde, o trabalho ou a educação. A liberdade de expressão não é assunto de jornalistas e menos ainda dos empresários dos meios. Um direito universal, individual e coletivo, superando a visão técnica e mercantilista que importamos dos Estados Unidos.
► *DISTRIBUIÇÃO DAS FREQUÊNCIAS*
O direito à comunicação se traduz, entre outras liberdades, no acesso equitativo às frequências de rádio e televisão. O artigo 106 é a verdadeira joia da coroa desta Lei. Este artigo estabelece a distribuição destas frequências, reservando 33% para meios públicos, 33% para privados e 34% para comunitários. (Este 1% de vantagem marca uma grande diferença e lembra que a titular do espectro radioeléctrico é a cidadania, que as frequências não são propriedade do Estado e menos ainda do Mercado. São um patrimônio comum da Humanidade.)
E como ocorrerá esta distribuição tripartite se as frequências estão já em mãos de determinados concessionários? Mediante a reversão de muitíssimas frequências que foram assignadas de maneira ilegal, com as mil e uma artimanhas inventadas por CONARTEL, o anterior órgão de telecomunicações.
► *FREQUÊNCIAS DIGITAIS*
Uma conquista com maiúsculas neste processo de distribuição de frequências é que inclui as próximas frequências digitais. Equador adotou o standard japonês-brasileiro que permite, ao menos, quatro sinais digitais onde antes cabia só um canal. Se estes quatro sinais ficassem em mãos dos mesmos concessionários, como ocorreu já na maioria dos países europeus, estaríamos multiplicando por quatro a concentração. A nova Lei estabelece que estes novos sinais sejam distribuídos equitativamente aos três setores.
► *NÃO MONOPÓLIOS*
E falando de concentração, o artigo 113 não tem desperdício. Proíbe o monopólio de frequências para garantir a maior diversidade e pluralidade na esfera pública. No Equador, a partir desta Lei, um concessionário só poderá ter uma frequência matriz em FM, uma em AM e uma em TV. Como no país há atualmente 1147 emissoras de rádio e 547 de televisão aberta, as vozes e os rostos se multiplicarão quando estes canais de comunicação estejam bem distribuídos. Este é um avanço histórico num país onde uma dezena de famílias tinham o controle da maior parte do espectro.
► *PRODUÇÃO NACIONAL*
A diversidade cultural equatoriana terá maior presença nos meios de comunicação. Cineastas, músicos, atores, grupos culturais e produtoras locais serão favorecidos, pois a Lei estabelece que ao menos 60% da programação diária no horário apto para todo público se destine à difusão de conteúdos de produção nacional, incluindo 10% de produção nacional independente (artigo 97). A música nacional deverá representar 50% do conteúdo da programação musical (artigo 103). Também a publicidade será de produção nacional. E, por certo, ficam proibidos todos os anúncios de bebidas alcoólicas e tabaco, assim como de drogas e pornografia infantil (artigo 94).
► *DIVERSIDADE DE CULTURAS*
A partir de agora os meios estão obrigados a difundir conteúdos que expressem e reflitam a cosmovisão, cultura, tradições, conhecimentos e saberes dos povos e nacionalidades indígenas, afro-equatorianas e montubias, por um espaço de, pelo menos, 5% de sua programação diária (artigo 36).
► *CRIANÇAS E ADOLESCENTES*
As vozes e os direitos das crianças e adolescentes contarão com espaços nos meios de comunicação. Os meios estão obrigados a promovê-los de forma prioritária. (artigo 15 e 65). Igualmente, os direitos das personas com deficiência estão garantidos na Lei (artigo 37).
► *PUBLICIDADE TÓXICA
Segundo o artigo 94, ficam proibidos os anúncios de bebidas alcoólicas, cigarros e drogas. Também la publicidade de produtos cujo uso regular afete a saúde. Muito bem, mas está comprovado que os refrigerantes e fest food afeta a saúde, especialmente de crianças. Terá coragem o Ministério de Saúde Equatoriano para proibir a publicidade de coca-cola, pepsicola e outros “energizantes”?
Então, poderíamos continuar listando muitas coisas boas da Lei. Mas há outras não tão boas. E essas não tão boas, todas, foram acrescentadas, de contrabando, pouco antes de sua aprovação pela Assembleia Nacional.
*O MAU DA LEI*
► *E AS TICS?*
O mais grave da Lei, a nosso juízo, não é o que diz, mas o que não diz. Todo o tema das tecnologias de informação e comunicação ficam apenas mencionadas no artigo 35 de forma retórica, mas não se concretiza em nada o “acesso universal” a ditas tecnologias. Este assunto, dizem os funcionários, se desenvolverá em outra Lei, a de Telecomunicações. Desta maneira, desconhecendo a convergência digital, se desmembra “comunicação” de “telecomunicação”, conteúdos de suportes. Qualquer um sabe que nestas tecnologias é onde está se jogando o maior dos negócios. Um negócio que o governo não quer “democratizar”.
► *MEIOS PÚBLICOS OFICIAIS*
O artigo 83 autoriza a criação de “meios públicos de carácter oficial”. Esta definição é, para dizer o mínimo, contraditória. Um meio público, por definição e por estar financiado pelos contribuintes, deve ter uma vocação pluralista e uma linha editorial independente. E um meio oficial é o contrário. E o grave deste artigo é que os tais meios oficiais são cobiçados por 33% correspondente aos públicos. E não se assinala que porcentagem poderiam ocupar. Desta maneira, sem violar a Lei, o governo poderia controlar a terceira parte do espectro para fazer propaganda.
► *TÍTULOS OBRIGATÓRIOS*
Desconhecendo a Declaração de Princípios de la Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (princípio 6), a Lei obriga a ter um título profissional de jornalismo para exercer qualquer trabalho permanente de qualquer nível em um meio de comunicação (artigo 42). Ou seja, um correspondente camponês não poderia enviar notícias porque não passou pela universidade. Um locutor não poderia animar um programa porque não tem título. Esta norma, forçada pelo egoísmo de alguns grêmios universitários, atenta contra a liberdade de expressão e arruína o futuro dos meios comunitários e locais. A titulação obrigatória deixa fora a centenas de comunicadores e comunicadoras desconhecendo a experiência acumulada que representa méritos equivalentes ao título.
► *LINCHAMENTO MIDIÁTICO*
A Lei em seu artigo 26 introduz um conceito metafórico que, embora busque evitar a difusão de informação, produzida de forma arquitetada, para desprestigiar a uma pessoa natural ou jurídica, pode provocar uma grave autocensura entre os jornalistas, especialmente os de investigação. Como poderia avançar uma investigação sobre a corrupção de um funcionário público quando a este lhe bastaria denunciar que estão afetando sua reputação? Já houve casos de importância no país que confirmam este perigo.
► *PRIVILÉGIOS PARA A IGREJA CATÓLICA*
Depois de pressões feitas pelo presidente da Conferência Episcopal, monsenhor Antonio Arregui, membro destacado da Opus Dei, se incluiu na Lei a Transitória 17 que concede à igreja Católica privilégios incompatíveis com um Estado laico. Como a Lei proíbe ter mais de uma emissora matriz, a igreja Católica poderá dissimular as várias matrizes no poder de um mesmo concessionário (por exemplo, Radio Maria que tem uma dezena de frequências) colocando-as a cargo de “entidades que pertençam à mesma família religiosa”.
► *LIBERDADE NA INTERNET?*
O artigo 20 estabelece que quem formular comentários nas páginas Web dos meios devem ser devidamente identificados pelo meio. Isto afeta explicitamente o anonimato online, elemento fundamental da liberdade de expressão na Internet. Além disso, a privacidade dos usuários poderia ver-se comprometida, já que não se estabelece como os meios gestarão os dados pessoais que estão obrigados a solicitar. A separação entre a informação gerada pelo meio e os comentários de particulares deveria ser suficiente para estabelecer responsabilidades.
► *CONSELHO DE REGULAÇÃO E SUPERINTENDÊNCIA*
Quem elabora o informe vinculante para conceder as frequências de rádio e televisão? O Conselho de Regulação. Quem regula o acesso universal à comunicação? O próprio Conselho que conta com onze atribuições, todas elas de grande responsabilidade. No projeto anterior da Lei, este Conselho tinha um perfil, mais ou menos, cidadão. Havia um representante das universidades, outro das nacionalidades indígenas, outro de organismos de direitos humanos. Tudo isso desapareceu e o Conselho aprovado está composto por cinco membros, todos do governo (artigo 47 e seguintes). Para o cúmulo, se estabeleceu uma Superintendência de Informação e Comunicação (órgão que vigia, controla e sanciona por violações à Lei, em particular em matéria de regulação de conteúdos) dirigida por um único funcionário público proposto pela Presidência da República (artigo 55 e seguintes). Que independência pode ter um desenho institucional assim?
Poderíamos encontrar outros artigos preocupantes. Porque inclusive os positivos, em sua aplicação, dependem de um Conselho e uma Superintendência sem a necessária autonomia.
*O FEIO DA LEI*
No mês de junho passado, já com maioria absoluta de Aliança País na Assembleia Nacional, em um par de horas e sem debate parlamentar se submeteu a votação o texto da Lei Orgânica de Comunicação. Mas o texto aprovado não era o mesmo que tinha sido apresentado nas sessões anteriores. Tinha contrabandos. Tinha, pelo menos, 40 modificações, artigos acrescentados, artigos suprimidos. Estes novos textos não foram sequer conhecidos com suficiente anterioridade pelos parlamentares.
Todas estas modificações, muitas delas sustanciais (composição do Conselho, Superintendência, meios públicos oficiais, etc), são inconstitucionais ao não terem sido debatidas na Assembleia. Não se entende a precipitação com que agiu, porque o governo tinha votos de sobra para aprovar a Lei. A Presidenta da Assembleia, Gabriela Rivadeneira, poderia ter sido mais elegante debatendo os textos novos o tempo que fosse necessário. Mas não o permitiu. Um procedimento feiíssimo.
Apesar do mencionado, as redes e organizações sociais que vinhamos acompanhando este processo há anos, e até décadas, não perdemos o otimismo nem a vontade e continuar protestando e propondo. Porque se joga muito nesta Lei de Comunicação não somente para Equador, mas para outros países irmãos da América Latina.
José Ignacio López Vigil
4 de outubro de 2013