OUTRO NOBEL PARA VARGAS LLOSA

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Leia o artigo “O nasciturus”…

De todos os cantos do mundo se ouviram os aplausos para Mario Vargas Llosa, recentemente nomeado Prêmio Nobel de Literatura.

Entre as muitas felicitações, está a das Católicas pelo Direito de Decidir. Mas estas mulheres valentes deram um novo Nobel pela sua posição progressista frente o tema do aborto.

Confiamos em que quem tanto admira Vargas Llosa por sua excelente literatura, leia o artigo abaixo e reflitam sobre o que diz o escritor peruano.


Equipe Radialistas

O nasciturus
MARIO VARGAS LLOSA 
 
O Congresso dos Deputados, em Espanha, reprovou por um voto uma ampliação da lei do aborto que teria acrescentado, às três condições já legitimadas para a interrupção da gravidez (estupro, má formação do feto ou perigo para a saúde da mãe) uma quarta condição, social ou psicológica, semelhante a que, com exceção da Irlanda e Portugal, admitem todos os países da União Européia, cujas legislações, com variantes mínimas, permitem o aborto voluntário dentro dos três primeiros meses de gestação.  

O resultado da votação foi uma grande vitória da Igreja Católica, que mobilizou-se em todas as frentes para impedir a aprovação desta lei. Houve um tremebundo documento da Conferência Episcopal intitulado Licencia ainda mais ampla para matar os filhos que foi lido por vinte mil párocos durante a missa, rogativas, procissões, comícios e chuva de cartas e ligações aos parlamentares (campanha que foi eficaz, pois quatro deles, cedendo à pressão, mudaram seu voto).  

Muitos intelectuais católicos, encabeçados por Julián Marías – para quem a aceitação social do aborto é uma das piores tragédias deste século -, intervieram no debate, reiterando a tese vaticana segundo a qual o aborto é um crime perpetrado contra um ser indefenso, e, por isso, uma selvageria intolerável não só do ponto de vista da fé, também da moral, a civilização e os diretos humanos.  
Está dentro dos usos da democracia que os cidadãos se alistem em ações cívicas em defensa de suas convicções, e é natural que os católicos espanhóis o tenham feito com tanta beligerância, em um tema que afeta suas crenças de maneira tão íntima. Por outro lado, os que estavam a favor da quarta condição – em tese, a metade da cidadania – permaneceram calados ou se manifestaram com extraordinária timidez no debate, transparecendo deste modo um incômodo inconsciente.  

Também é natural que seja assim. Acontece que o aborto não é uma ação que entusiasme nem satisfaça a ninguém, a começar pelas mulheres que se vêm a recorrer a ele. Para elas, e para todos os que cremos que sua despenalização é justa, e que as democracias ocidentais fizeram bem as democracias ocidentais – do Reino Unido a Itália, da França a Suécia, da Alemanha a Holanda, dos Estados Unidos a Suíça – em reconhecê-lo assim, trata-se de um recurso extremo e ingrato, ao que é preciso resignar-se como a um mal menor.  

A falácia maior dos argumentos contra o aborto, é que se esgrimem como se o aborto não existisse e só passou a existir a partir do momento em que a lei o aprovou. Confundem despenalização com incitação ou promoção do aborto e, por isso, exibem essa excelente boa consciência de "defensores do direito à vida".  

A realidade, entretanto, é que o aborto existe desde tempos imemoriais, tanto nos países que o admitem como nos que o proíbem, e que vai continuar sendo praticado de qualquer modo, com total prescindência de que a lei o tolere ou não. Despenalizar o aborto significa, simplesmente, permitir que as mulheres que não podem ou não querem dar a luz, possam interromper sua gravidez dentro de certas condições elementares de segurança e segundo certos requisitos, ou o façam, como ocorre em todos os países do mundo que penalizam o aborto, de maneira informal, precária, arriscada para sua saúde e, além disso, podendo ser incriminadas por isso.  

Significa, também, reduzir a discriminação que, de fato, existe neste domínio. Onde está proibido o aborto, a proibição só tem algum efeito nas mulheres pobres. As outras, o têm a seu alcance quantas vezes o requeiram, pagando as clínicas e os médicos privados que o praticam com a discrição devida, ou viajando ao exterior. As mulheres de escassos recursos, ao contrário, se vêm obrigadas a recorrer às aborteiras e curandeiros clandestinos, que as exploram, malogram, e por vezes as matam.  

É absolutamente ocioso discutir sobre se o nasciturus, o embrião de poucas semanas, deve ser considerado um ser humano – dotado de uma alma, segundo os crentes – ou só um projeto de vida, porque não há modo algum de sanjar objetivamente a questão. Isto não é algo que a ciência possa determinar; ou, melhor, os cientistas só podem pronunciar-se em um sentido ou em outro não em nome de sua ciência, mas de suas crenças e princípios, igual aos leigos. Desde logo que é respeitabilíssima a convicção de quem sustenta, guiado por sua fé, que o nasciturus já é um ser humano imbuído de diretos, cuja existência deve ser respeitada. E também o é que, coerentes com seus princípios, os tornem públicos e tratem de ganhar adeptos para sua causa.  

Seria um atropelo intolerável que, por uma medida de força, como ocorreu na Índia de Indira Ghandi, ou como ocorre ainda na China, que uma mãe seja obrigada a abortar. Mas não é, igualmente, que seja obrigada a ter os filhos que não quer ou não possa ter, em razão de crenças que não são as suas, ou que, sendo, impelida pelas circunstâncias, se vê induzida a transgredir? Esta é uma delicada matéria, que tem que a ver com o cerne da cultura democrática.  

A chave do problema está nos direitos da mulher, em aceitar se, entre estes diretos, figura o de decidir se quer ter um filho ou não, ou se esta decisão deve ser tomada, em vez de dela, pela autoridade política. Nas democracias avançadas, e em função do desenvolvimento dos movimentos feministas, foi se abrindo caminho, não sem enormes dificuldades e após ardorosos debates, a consciência de que a quem corresponde decidi-lo é a que vive o problema nas próprias entranhas de seu ser, que é, além disso, quem suporta as conseqüências do que decidir. Não se trata de uma decisão frívola, mas difícil e amiúde traumática.  

Um imenso número de mulheres se veem empurradas a abortar por essa quarta condição, precisamente: condições de vida nas quais trazer uma nova boca ao lar significa condenar o novo ser a uma existência indigna, a uma morte em vida. Como isto é algo que só a própria mãe pode avaliar com pleno conhecimento de causa, é coerente que seja ela quem decida.  

Os governos podem aconselhá-la e fixar certos limites – daí os prazos máximos para praticar o aborto, que vão desde as 12 até as 24 semanas (na Holanda) e a obrigação de um período de reflexão entre a decisão e o ato propriamente dito -, mas não substituí-la na transcendental eleição. Esta é uma política razoável que, mais cedo ou mais tarde, terminará sem dúvida por impor-se na Espanha e na América Latina, a medida que avance a democratização e a secularização da sociedade (ambas são inseparáveis).  

No entanto, que a despenalização do aborto seja uma maneira de atenuar um gravíssimo problema, não significa que não possam ser combatidas com eficácia as circunstâncias que o engendram. Uma maneira importantíssima de fazê-lo é, desde logo, mediante a educação sexual, na escola e na família, de maneira que mulher alguma fique grávida por ignorância ou por não ter a seu alcance um contraceptivo. Um dos maiores obstáculos para a educação sexual e as políticas de controle da natalidade é também a Igreja Católica, que, até agora, com algumas escassas vozes discordantes em seu seio, só aceita a prevenção da gravidez mediante o chamado "método natural", e que, nos países onde tem grande influência política – muitos ainda, na América Latina – combate com energia toda campanha pública encaminhada para popularizar o uso da camisinha e de pílulas anticoncepcionais.  

Se impõe uma última reflexão, a partir do anterior, sobre este delicado tema: as relações entre a Igreja Católica e a democracia. Aquela não é uma instituição democrática, como não o é, nem poderia sê-lo, religião alguma (com a exceção do budismo, talvez, que é mais uma filosofia que uma religião). As verdades que ela defende são absolutas, pois vêm de Deus, e a transcendência e seus valores morais não podem ser objeto de transações nem de concessões com respeito a valores e verdades opostos.  

Posto isso: embora pregue e promova suas ideias e suas crenças longe do poder político, em uma sociedade regida por um Estado laico, competindo com outras religiões e com um pensamento arreligioso ou antirreligioso, a Igreja Católica se ajusta perfeitamente ao sistema democrático e lhe presta um grande serviço, oferecendo a muitos cidadãos essa dimensão espiritual e essa ordem moral que, para um grande número de seres humanos, só são concebíveis por mediação da fé. E não há democracia sólida, estável, sem uma intensa vida espiritual em seu seio.  

Mas se esse difícil equilíbrio entre o Estado laico e a Igreja se altera e esta impregna aquele, ou, pior ainda, o captura, a democracia está ameaçada, a curto ou médio prazo, em um de seus atributos essenciais; o pluralismo, a coexistência na diversidade, o direito à diferença e à dissidência.  
A estas alturas da história, é improvável que voltem a erigir-se os patíbulos da Inquisição, onde se queimaram tantos ímpios inimigos da única verdade tolerada. Mas, sem chegar, claro está, aos extremos talibãs, é seguro que a mulher retrocederia do lugar que conquistou nas sociedades livres a esse segundo plano, de apêndice, de filha de Eva, em que a Igreja, instituição machista, a tem mantido sempre confinada.