94- À DIREITA E À ESQUERDA

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Quando saímos de Cafarnaum, a caminho de Jerusalém, o sol já estava quente. Íamos os doze do grupo com Maria, a mãe de Jesus, sua vizinha Susana, minha mãe Salomé e Maria, de Magdala. Jesus abria a marcha. Caminhava depressa… A primavera com suas cores, vestia os campos da Galiléia. Quando já era escuro, chegamos a Jenin e decidimos passar a noite num dos campos que rodeiam a pequena cidade, na fronteira entre a Samaria e a Galiléia…

Salomé: Com esses ossos de frango que eu trouxe, faço uma sopa de chupar os dedos… O que você acha?

Susana: Boa idéia, Salomé… A noite vai ser fria. Se esquentarmos as tripas desses sem-vergonhas, eles dormirão melhor… Ei, você, menina, vai buscar um punhado de tomilho… É isso que dá sabor à sopa…

A madalena foi buscar o tomilho enquanto Susana, Salomé e Maria, junto ao fogo, preparavam o jantar daquela primeira noite de viagem…

Salomé: Qual é a dessa madalena?… tem um gingado e uns olhares…

Susana: É o que você está vendo, Salomé. Jesus diz que ela mudou muito, mas minha avó também dizia que gênio ruim e feia figura vão até à sepultura…

Madalena: Aqui está o tomilho…

Salomé: Traga aqui, vamos… Mas, que erva é esta, menina?… Isto não é tomilho…

Madalena: É sim, dona Salomé… Cheire as folhas… É tomilho…

Salomé: Bem, jogue-as aí no caldeirão… O que não mata, engorda.

Maria: Vamos jogar um pedaço de queijo também, o que acham?

Salomé: Não, Maria, a sopa e essas azeitonas já é o suficiente…

Madalena: Pois o Pedro disse que está com uma fome danada…!

Salomé: Ele sempre está. Não se satisfaz com nada. Parece um saco sem fundo.

Madalena: É, ele está bem forte. Não é para menos que Jesus o tem como braço direito…

Salomé: Braço direito de que?

Madalena: Bem, depois de Jesus, Pedro.

Salomé: Muito, bem, de onde você está tirando essa idéia, madalena, diga?

Madalena: De onde estou tirando? Todo mundo sabe disso! A senhora não sabia, dona Maria… ei, você que é mãe de Jesus… ele não lhe disse?

Maria: Não, eu não sabia de nada, mas…

Salomé: Você é uma fuxiqueira, madalena, uma língua comprida!

Madalena: Eu? Por que sou fuxiqueira? Dona Maria, não é verdade que Jesus confia mais no Pedro-pedrada?

Maria: Não sei, eu acho que… confia em todos, madalena. Não tenho reparado muito nisso, mas…

Madalena: Pois então repare e veja se eu sou uma fuxiqueira ou se essa Salomé é que é uma desconfiada, diacho! Eu ouvi dizer por aí e foram seus próprios filhos, sim, sim, Tiago e João, essas belas figuras, que se acontecer alguma desgraça a Jesus, que Deus o livre e guarde, tocará a Pedro agarrar o timão do barco…

Susana: Ai, menina, não fale agora de desgraças…!

Madalena: Está bem, então eu me calo, mas a verdade é que estamos metidos numa gorda confusão com esta viagem para Jerusalém. Sim, agora Jesus vai dar a cara por todos, mas se acontecer alguma coisa com ele, quem tocará o barco será Pedro…

Salomé: De novo a mesma história!… Por que Pedro, vamos ver, diga por que?

Madalena: Veja, senhora, Jesus tem um bom olho e, entre todos esses bandidos soube escolher alguém que é um tantinho assim mais decente, caramba. Esse Pedro tem lá as suas, sim, mas também tem palavra… Não é como os… “outros”.

Salomé: De quem você falando como … “outros”?

Madalena: De… ninguém.

Maria: Bem, parem de se cutucar. Vamos, menina, vai dizer aos homens que venham, a sopa já está fervendo…

Madalena: Ei, Jesus!! Ei, todo mundo, venham comer!… Venham logo!!

Salomé: Viu só, Maria, e você, Suzana, viu como essa fulana defende o Pedro?… Descarada. Só podia ser rameira… A sem-vergonhice lhe sai pelos poros!

Maria: Esqueça isso, Salomé. Acho que ela não falou por mal…

Salomé: Não a defenda, Maria… Ela não perde a oportunidade de dar umas piscadelas para os meus filhos… Bela safada! Não bastava já ter ido atrás de tantos outros?!…

Susana: Vai ver era para cobrar alguma dívida…

Maria: Cale-se, Susana, não complique mais as coisas…

Salomé: Eu não sei, Maria, mas com essa mulher no meio de tantos homens…

Felipe: Esta sopa merece um aplauso, sim senhor!

Natanael: Está tão gostosa que até esqueci a dor dos meus calos!

Pedro: Pois eu estou sentindo um saborzinho meio estranho…

João: Isso é coisa da sua cabeça, Pedro…

Tiago: O que falta agora é vinho!

Maria: Amanhã o compraremos em Siquém. Ali tem do bom.

Tiago: Puah! O vinho samaritano tem gosto de óleo de rícino…

Felipe: Lá vem o Tiago com suas manias. Deixemos os samaritanos de lado e vamos jogar dados, companheiros… Você joga, Jesus?

Jesus: Só quando acabar de chupar esse osso, Felipe. Comecem vocês…

Jesus ficou sentado perto das brasas, enquanto as mulheres recolhiam as sobras e guardavam os pedaços de pão para o dia seguinte. Nós doze, nos afastamos um pouco, até onde a lua, com sua meia roda de luz branca, nos iluminava o suficiente para que ninguém fizesse trapaça nos dados…

Jesus: E então, mamãe, muito cansada…?

Maria: Até que não, filho. Já fazia muito tempo que não caminhava tantas milhas de uma vez, mas vou agüentando…

Susana: Sabe de uma coisa, Jesus? Sua mãe já tem idade mas ainda conserva pernas de uma jovenzinha… Em compensação, esta aqui, já está caindo de sono… Ahuuummm…!

Felipe: Oito! Esta rodada já é minha! Iupiii! Estou com sorte, camaradas!

Tiago: Vai pros quintos, Felipe! Ei, Pedro, vamos lá, é sua vez…

Pedro: Não… vai outro… eu… eu vou ter que dar uma saidinha…

Tiago: Mas, o que acontece, homem?

Pedro: Puff!…Tantas horas sem comer nada… e záz!, de repente essa sopa que tinha um saborzinho meio estranho…

Felipe: Para mim estava muito boa… Esquentou-me as tripas…

Pedro: Para mim, embrulhou-me o estômago… Uff!… É como uma tempestade no lago de Tiberíades… Olhem, acho melhor resolver esse assunto por aí… porque se não… uff!…

João: Vai bem longe, pedrada, pelo amor à sua avó!

Felipe: E volte logo!

Pedro se afastou até um pequeno bosque de olivas e se perdeu entre as árvores…

Salomé: Olhe só essas três… Já estão roncando…

Jesus: Sim, Salomé… ainda lhe ficou uma palavra colada na boca…

Salomé: Escute, Jesus, agora que estamos sós, eu queria lhe dizer uma coisa.

Jesus: Pois, diga, Salomé…

Salomé: Venha, vamos mais para lá, para não despertar essas dorminhocas…

Minha mãe e Jesus foram até o pequeno bosque de oliveiras e se sentaram junto a uma árvore…

Salomé: Trata-se dessa madaleninha, Jesus… Ela é um diacho…!

Jesus: O que aconteceu? Andaram discutindo?

Salomé: Eu não gosto de falar, moreno, mas essa mulher e Pedro…! Não que eu queira pensar mal, ou o Pedro está paquerando a danada, ou ela está paquerando o Pedro… Aqui não tem trigo limpo.

Jesus: Mas, não me diga uma coisa dessa, dona Salomé…

Salomé: Ai, se a Rufina tivesse vindo!… Sim, sim, a coisa é com Pedro… Para Madalena, Pedro é o

máximo. É o mais forte, o mais valente de todos, o melhor… Está dando muito na cara, Jesus. Ela não sabe esconder… e como vai saber!… Tantos anos no ofício… Bem, não é que eu queira prejudica-la, mas essa mulher é perigosa…

Jesus: Você acha mesmo, dona Salomé?

Salomé: E o pior não é isso. Agora anda espalhando que você disse que o pedrada é seu braço direito. E que, depois de você, é o Pedro. Eu acho que isso não pode ser. Não posso acreditar. Você e todos conhecem o Pedro: muito barulho pra pouca coisa. Um maluco, isso é o que ele é… Ela diz que é valente! Mas, qualquer barulho o espanta!… Enfim, para que falar nisso?

Jesus: Não, não, continue falando…

Salomé: Olhe, Jesus, dizem que o diabo sabe mais por velho do que por diabo. E eu já tenho cabelos brancos, moreno. Quer um conselho?

Jesus: Vejamos, dona Salomé, que venha o conselho…

Salomé: Com um braço direito como Pedro… melhor é ficar maneta! Jesus, você precisa de um braço direito e um braço esquerdo. Dois bons braços dispostos, firmes, que o ajudem e o defendam…

Jesus: E em quem você está pensando?

Salomé: Nos meus filhos. E não por serem meus, mas porque merecem. Tiago e João são capazes de dar até a última gota de sangue por você, se for preciso. Pense bem, Jesus ponha de lado esse babão do Pedro e apóie-se nos meus filhos. Um à sua direita, outro à sua esquerda.

Pedro: Ah, seu pudesse agarrar você, velha traidora. Aos diabos com essa Salomé! Aqui!!! Todos aqui!!!

Os gritos escandalosos de Pedro estremeceram o olival e puseram todos de pé, nós jogadores de dados e as três mulheres que já estavam dormindo. Todos saímos correndo até onde Pedro, esgüelando-se, nos chamava…

Jesus: Mas, Pedro, de onde você saiu? Onde estava metido?

Pedro: Estava ali, atrás daquela árvore. E ouvi tudo!

Salomé: E pode-se saber o que você estava fazendo ali, condenado?

Pedro: Algo mais digno do que você estava fazendo, se quer saber. Todos aqui! Corram e arranquem a língua desta bruxa!

Tiago: Mas, o que está acontecendo, caramba? A troco de quê essa gritaria, Pedro?

Pedro: O que está acontecendo? É que esta senhora sua mãe é uma fofoqueira e uma conspiradora! Sabe o que ela disse? Que a madalena e eu temos um caso.

Madalena: Como? Quem me meteu nessa confusão? Demônios, mas, quem disse isso? Vamos ver, o que eu fiz para você me jogar nessa arapuca, Salomé?

Tiago: Cale essa boca, Maria e não estique mais a corda!

Pedro: Quem esticou a corda foi a senhora sua mãe, está ouvindo? E foi, você, cabelo-de-fogo, e você, João, seu mosca morta, vocês dois, dupla de sem-vergonhas!

Tivemos muito trabalho para esfriar a raiva de Pedro que nos explicou o que tinha ouvido entre aquelas árvores. Enquanto ele falava, minha mãe, Salomé, não levantou os olhos do chão…

Felipe: Então é assim? A troco de quê Salomé disse isso tudo?

Pedro: Sim, senhor. Esta velha merece ser enforcada.

Tiago: Espere, Pedro, se você está com tanta coceira, alguma coisa deve haver..

Pedro: O que você está insinuando agora?

Tiago: Você é que está insinuando coisas muito estranhas. Veja só, quem diabos disse que você seria o braço direito de alguém?

Pedro: Jesus disse, quando viajamos para o norte. Não se lembra?

João: O moreno não disse isso! Isso era o que você queria que ele dissesse. Mas não disse!

Pedro: Vocês estão vendo? São iguaizinhos à mãe! Conspiradores os dois! Vocês mandaram que ela falasse mal de mim!

Tiago: Se você tornar a mencionar minha mãe, Pedro, eu lhe arranco as barbas!

Pedro: Por que você não vem, Tiago, que esta noite eu não me deito sem estrangulá-lo.

Madalena: Bem, bem, tudo começou por minha culpa, não é? Pois estou caindo fora! Agora mesmo vou dar meia volta e… direto para Cafarnaum!

Jesus: Não, Maria, você não vai a parte alguma.

Pedro: Aqui, a única pessoa que tem que se mandar é essa velha resmungona. E seus dois filhos!

Jesus: Aqui, ninguém vai embora, Pedro. Nem Salomé, nem Maria, nem vocês dois, nem ninguém. Acho que já chega, caramba! É a primeira noite que estamos juntos e já estamos nos bicando como galos. Estamos indo para Jerusalém e as coisas vão ficar difíceis. Temos que estar unidos. Se chegar o momento de beber o gole amargo, todos teremos de beber do mesmo copo. Todos. Temos que acabar com essa história de braços direitos e braços esquerdos entre nós. Aqui ninguém é mais que ninguém. Todos estamos dentro do mesmo barco e todos temos de remar para seguir adiante. Ou vamos de vento em popa juntos, ou nos afundamos todos!

João: E iremos de vento em popa, moreno! Está certo, companheiros! Jesus tem razão. E, agora, vamos para outro canto que o perfume daqui não dá para agüentar!

Naquela noite todos custaram a dormir. Pedro resmungou até bem tarde. E minha mãe, Salomé, deu voltas e voltas antes de adormecer. Estávamos muito cansados. Na manhã seguinte tínhamos que madrugar para continuar nossa viagem a Jerusalém.

*Comentários*

O evangelho fala constantemente que várias mulheres tomavam parte do grupo de Jesus e o seguiam quando ia de povoado em povoado anunciando o Reino de Deus (Mc 15, 40-41; Lc 8, 1-3). Há uma enorme novidade no fato de Jesus permitir que mulheres o acompanhassem junto com seus discípulos. Salomé, Susana, Maria Madalena – e outras mais que seguramente fariam parte do grupo – tornam-se assim um sinal do caráter revolucionário do evangelho numa sociedade totalmente machista. As palavras e as atitudes de Jesus com relação às mulheres chocaram-se profundamente com os costumes de sua época. A Igreja cristã, para ser fiel a Jesus, deve ser um espaço de verdadeira igualdade entre homens e mulheres, onde ninguém se sinta discriminado por seu sexo na hora de realizar as tarefas de serviço à comunidade.

No grupo de Jesus, como em qualquer grupo humano, nem tudo seria um mar de rosas. Haveria ambições, disputas, suspeitas, desconfianças, mentiras. Nem sempre dramáticas. Bastaria que fossem conflitos cotidianos, para que a convivência sofresse altos e baixos. Assim acontece em toda relação humana coletiva. Concretamente, a presença da Madalena deve ter provocado muitos choques, por tudo o que representava sua profissão para o resto do grupo. Jesus não camuflou esses conflitos. Ao reunir gente tão diferente, os propiciou. Essas crises no interior da comunidade podem às vezes ser muito saudáveis, pois fazem aflorar as contradições e permitem o grupo avançar no conhecimento, tanto de suas possibilidades como de suas limitações.

Jesus não pretende que esses conflitos desapareçam. No que ele se mostra exigente é que ninguém queira se colocar por cima de ninguém. Na comunidade não deve haver nenhum privilégio, nenhuma opressão de uns sobre os outros, nenhuma diferença baseada em maior inteligência, mais habilidade ou outra razão qualquer. Frente ao modelo “senhor-escravo” que os poderes do mundo tratam de manter – tanto nos tempos de Jesus como em nossos dias – o evangelho se apresenta como uma alternativa. Trata-se de criar uma comunidade onde este esquema de dependência seja substituído pela raiz. Comunidades em que todos os seus integrantes vivam como iguais, onde a única autoridade seja a de Deus, onde só se rivalize para realizar o melhor para os demais. As comunidades cristãs devem ser a consciência crítica de nossas sociedades, baseadas no poder, nos privilégios e nas desigualdades.

Neste episódio, mais do que colocar o problema surgido pela inveja de Salomé como um complô “para tomar o poder”, ou como uma transcendental intriga política, pretende-se enfocar a cena do ponto de vista muito mais cotidiano. O típico preconceito moral, a pequena ambição materna de ver seus filhos progredirem, a inveja que não se pode dissimular, são a causa do conflito. A cena de humor protagonizada por Pedro foi inspirada por um texto do AT, no qual Davi vive uma situação semelhante quando é perseguido por Saul (1 Sm 24, 1-8). A Bíblia está cheia de cenas picarescas que caracterizam a vida diária e não são, certamente, nem insípidas, nem incolores, nem inodoras…

(Mt 20, 20-28; Mc 10, 35-45)